segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Harold Pinter, poeta, escritor, actor, encenador e argumentista, considerado o maior expoente dramático inglês da segunda metade do séc. XX morreu aos 78 anos, na véspera de Natal. Era filho de um alfaiate judeu, com ascendência luso-judaica. estudou teatro na Royal Academy of Dramatic Art, de onde saiu ao fim de dois semestres para pisar o palco. Escreveu 32 peças, sendo a primeira, "The Room" em 1 acto, apresentada em 1957. O seu interesse pela política intensificou-se com o seu 2º casamento. Foi um activista politico muito crítico, especialmente em relação a governação de Bush e da sua conterrânea Margareth Thatcher e depois, de Tony Blair. Foi vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2005, mas já muito debilitado por um cancro no esófago, não foi autorizado pelo seu médico a ir recebê-lo. Enviou um discurso gravado, que usou para criticar Bush e definir a guerra do Iraque como "uma acção de bandidos". Recusou o título de sir que Elisabeth II lhe concedeu. A partir de 1973 ficou conhecido também como defensor dos direitos humanos. Transcrevemos um excerto do seu discurso de aceitação do Prémio Nobel:
" Estou convencido de que, apesar dos enormes obstáculos existentes, há uma obrigação crucial que recai sobre todos nós enquanto cidadãos: de com uma determinação intelectual inflexível, inabalável e feroz definir a verdade autêntica das nossas vidas e das nossas sociedades. É de facto uma obrigação imperativa. Se essa determinação não se incorporar na nossa visão política, não tenhamos esperança de restaurar aquilo que já quase se perdeu para nós — a dignidade do homem".

Termino com dois poemas seus.

À Minha Mulher

Eu estava morto e vivo agora
Tu pegaste-me na mão

Eu morri cegamente
Tu pegaste-me na mão

Tu viste-me morrer
E encontraste-me a vida

Tu foste a minha vida
Quando eu morri

Tu és a minha vida
E assim eu vivo.

O Mundo Está Prestes a Rebentar

Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.

Poemas in "Várias Vozes"

domingo, 21 de dezembro de 2008

NATAL III

Para não dizerem que eu não falei de flores.
Quem não se lembra desta bonita canção do Geraldo Bandré, cujo refrão é assim:
Vem, vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera o acontecer

Pois, para não dizerem que eu não falei de flores, hoje trago aqui, para regozijo dos carantonhas, o Natal em poesia.

HISTORIA ANTIGA

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava,e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou por milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela aldeia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter na inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga

A ÚLTIMA PRENDA DO MENINO JESUS

O Menino Jesus já cansadinho
De tanto andar por cima dos telhados,
Descalçou os sapatos apertados
- Eram novos - e pô-los no caminho.

Nisto, sentiu ruído ali pertinho...
Trepou à chaminé com mil cuidados,
E que viu? - Dois tamancos esburacados
E, ao pé deles, rezando, um petizinho.

O Menino Jesus que faz então?
Sem ter nenhum brinquedo ali à mão,
Desses que tanto agradam aos garotos,

Troca os sapatos pelos do petiz.
- E depois vai ao céu mostrar, feliz,
À Virgem Mãe os sapatinhos rotos...

Adolfo Simões Muller


NATAL

Menino dormindo...
Silêncio profundo
Bem vindo, bem vindo,
Salvador do Mundo!

Noite. Noite fria.
Mas que linda que é!
De um lado Maria
Do outro José.

Um anjo descerra
A ponta do véu...
E cai sobre a Terra
A imagem do Céu!

Pedro Homem de Mello

E, caros Carantonhas, por aqui me fico, (pois vou estar ausente alguns dias), com os desejos de um Natal Feliz. E nada melhor do que finalizar com a última estrofe do poema Dia de Natal, de António Gedeão.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É Dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

È Natal II

Mais um texto sobre o Natal. É um texto com incorreções linguísticas, próprias da idade que quem o escreveu tinha na altura - 11 anos-, mas já com um estilo bem vincado que nos leva a um final inesperado. O texto não tem qualquer correcção. Estás virgem. Foi escrito pelo meu neto mais velho, Ricardo de seu nome, agora a caminho dos 15 anos.

NATAL
Num dos primeiros dias de Inverno, estava eu a passear pela rua do meu bairro,para fazer as compras de Natal. O céu estava com uma cor triste; havia mares de pessoas com o mesmo objectivo que eu. Passava pelas montras mas não via nada, só belas coisas inúteis a cintilarem e a parecer dizer: -"Comprai-me, comprai-me". Mas eu não caía nessa.
Continuei com o meu destino, até que vi um homem, quase nu, com um aspecto tão pobre, que não tinha pão nem o seu ninho. Ao lado dele estava um café; fui lá, comprei um chocolate quente, ofereci-lho e cobri-o com o meu casaco; ele agradeceu-me, e com uma voz rouca sussurrou-me: «que Deus te abençoe ho, ho, ho». Fiquei com as palavras na cabeça; essas palavras pareciam-me familiares. Continuei a andar lentamente, quando percebi que aquelas palavras vinham da língua polo-nortês, mais conhecida como polo nortiano, e que a pessoa que as dizia era o... De repente ouvi um barulho estranho, olhei para trás e vi o mesmo homem, que por acaso estava mais gordo, em cima de um trenó a dizer: Made in POLO NORTE, com um super motor do caraças, com renas a conduzi-lo; era quem eu pensava: o Pai Natal!
- "Ho, ho, ho, Feliz Natal"- disse ele.
E eu todo contente agradeci-lhe.
E lá ia ele no seu trenó com um motor potente, até que este ficou sem gasolina, mas eu reparei que o motor estava cheio. Então pensei logo que o trenó vinha do chinês e ere verdade; começou a chover (infelizmente) e na tira que dizia made in POLO NORTE, apareceu made in CHINA. Então fiquei a pensar que o Pai Natal é um falso e nunca mais lhe escrevi.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

É Natal


O Natal está aí. A época, o consumismo. O dia vai chegar pra semana e apesar da crise (qual crise?), continuo a pensar que, com muitas prendas, muita comida. Declaração de intenções: o meu Natal é o do Menino Jesus. Por isso fui roubar ao http://www.teoriadoscalhaus.blogspot.com/ o blog do meu amigo barcelense Flávio Lopes da Silva, do qual tive o prazer de participar na apresentação do seu novo livro de poesia "Sou um Louco que sabe tocar Acordeão", o seguinte texto:
"É Natal. Temos um mês inteirinho para pensar no que é que iremos pedir ao Pai Natal. Uma bicicleta. Um peluche. Um jogo de cozinha. Duas notas de vinte. Uma cunha na secretaria da câmara.
O Natal é fixe. Ver as pessoas na rua munidas de cartão de crédito, gastando suor em décimas de segundo, contribuindo para a milionaridade do Belmiro de Azevedo, comprando coisas larocas para durar dois dias e depois, lixo, é um espectáculo a não perder neste Teatro em qualquer rua perto de si.
O nosso coração enche-se de brilhantes, vemos tudo a piscar, os preços nas lojas a piscar-nos os olhos, a madamme a experimentar um vison que o amante, que é manso, lhe diz: “leva meu amor!”.
Os shoppings carregados de ratoeiras para o freguês com chinesices e guloseimas de criar abcessos.
Os banqueiros sorrindo, as contas de uns emagrecendo e a de outros ganhando banha da boa.
O capitalismo ganhando cabedal, o operário, coitado, tem cinquenta putos ranhosos lá em casa a pedir um matraquilhos.
Gosto do natal porque nesta época a tristeza e a miséria - que parecem duas fufas - vão dar uma volta ao bilhar grande, e durante alguns dias irão dormir com o rafeiro. Ah, que sorte!
Tudo é bonito, tudo fala de amor como se isso fosse um instrumento de tocar nos lábios. A Fraternidade, esquecem-se que é um caramelo que se desgasta, e o Amor, acreditem que não sai em cabaz algum.
As crianças calçam sapatos novos mas continuam a calçar as meias rotas.
Os jornais a falarem de fadas e princesas, o mundo a maravilhar-se com a fantasia, milhões de barbies preenchem as casas. As guerras em stand by.
O negócio sempre a render, o vegetariano rompe com a sua filosofia e desbunda uma boa coxa de perú. Pela rua a beleza é um samba português já que a farsa anda bem disfarçada.
Os três reis magos a passarem na minha zona de Porshe, com seus ares de quem nunca participou em greves, anunciando o nascimento do menino pobre.
É natal. A crença ganha mais adeptos. Acreditar é um espectáculo que faz subir as caixas registadoras, mais velas derretidas para nomear um Santo padroeiro.
Depois das trocas de prendas, de passado o efeito do espumante, do circo que foi ao ver o sogro a engasgar-se com uma espinha do bacalhau, depois de olhar a factura da luz e do arrependimento de ter deixado não sei quantos dias o pinheirinho ligado, a consumir quilos de watts, depois de termos desacreditado a criança quando tentávamos imitar o Pai Natal, e ela, assim que abrimos a boca, disse: “eu conheço este hálito!”, vem a realidade ao de cima acompanhada de feras e outros gigantes horrendus; e que não está para cócegas!
Pois é, esta é a parte mais triste desta história de Natal, já que, depois da luminosidade e do riso, vem a tristeza, depois da festa surgem os telefonemas dos senhores bem educados do banco a pedir que actualizemos a nossa situação bancária, e o pai tolo e a começar a levantar a voz para a mulher que está cansada de lavar tachos queimados. E depois é o filho que quer ir para o ginásio queimar as calorias causadas pelas rabanadas, mas claro, o guito foi-se e, décimo terceiro mês só para o ano. E os operários de novo na realidade com espinhas, puxando com a força de braços as máquinas perras, a terem que produzir mais e mais, a alegria a baixar seus níveis de beleza, Jesus Cristo a ser banalizado nas anedotas, as uvas passas misturadas com a ração para o rafeiro, a guerra a fazer peito, o combustível a diminuir nos depósitos, o Ferrero Rochê a fazer estragos nos intestinos. O sentimento das pessoas a ser entendido apenas com manual de instrução!
E porque a realidade não se deixa enganar, o melhor é não oferecermos uma capa de super-homem aos nossos filhos, uma vez que ele poderá pensar que será capaz de voar e os resultados são desastrosos. Viva o Pai Natal! Viva a electrónica! Viva o Belmiro que nos deixa sonhar em cada prateleira de Hipermercado! “Viva eu cá na terra” a tentar consertar o meu pessimismo!
Ainda dizem que o Natal havia de ser todos os dias. O caraças que havia! E depois quem é que paga as favas?!"
Obrigado Flávio, continua a ser irreverente e politicamente incorrecto

domingo, 14 de dezembro de 2008

Este é o Nico

Depois de ter escrito o post aí em baixo, resolvi, como faço de vez em quando, revisitar a poesia de Eugénio de Andrade, um dos poetas de que mais gosto, embora não me entusiasmem particularmente os seus últimos livros. De qualquer modo, é sempre bom refrescar a memória com boa poesia. Para escrever este post tive que ter a aquiescência do Nico (o meu gato) que teimava em ter a sua lição habitual de escrita. Anda a aprender a teclar.liyg78u64767 cv6988n0’ 8ui nbfffhnbhdfngdçlhjiuyc675z5432w. Como podem ver, não minto. Autorização concedida, e para agradecer a boa vontade do Nico, achei por bem deixar-vos aqui um poema do Eugénio, no qual nos fala de alguns dos seus gatos.

ACERCA DE GATOS

Em Abril chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no punhal, não lhe tive,
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.

O persa azul de que se fala neste poema chamou-se Micky e foi-lhe oferecido num dia de anos, por quem sabia da sua afeição por gatos. Dele disse Eugénio: «o meu amor por esta alminha era materno». E continuou:«Que um homem assumisse poeticamente a maternidade não poderia causar estranheza mas que tratasse por “alminha” o seu gato era coisa de que só o diabo se lembraria». Um dia Micky adoeceu com cálculos renais, doença comum nos gatos persas, e não foi possível salvá-lo.
Diz-nos a terminar, o poeta: “E lembro-me bem da nossa despedida, o oiro dos olhos embaciado.
Eu sempre soubera que a beleza era o que havia de mais frágil sobre a terra”.
Poema in O Sal da Língua. Prosa sobre o persa in Rente ao Chão

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Palavras


Hoje tinha pensado falar de palavras. Aqui chegado, e a esta hora, verifico que estou "seco". Nem a imaginação nem as palavras me surgem. E porque não quero maltratá-las, pois como diz Eugénio de Andrade, "são como um cristal as palavras", vou deixar que falem por mim a fotografia acima e o próprio Eugénio.

LUME DE INVERNO

O lume. O lume rasteiro. O lume
ainda. Vem de tão longe. Da casa
térrea sobre a eira,
casa onde qualquer coisa pequena
pulsava.: um coração,
a água do cântaro,
o trigo a crescer.
Era tão pequeno que não sabia
como pedir uma laranja,
um pouco de pão.
Menos ainda, um beijo.
Parecia só saber
estender as mãos para aquele sol
rasteiro e para o olhar
que dos sortilégios do lume
o defendia
.

Eugénio de Andrade- In Os Sulcos da Sede - Editora Fundação Eugénio de Andrade

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Dia da Mãe

Sabe-se que as mais antigas comemorações do dia da Mãe tiveram origem na antiga Grécia em honra de Rhea, mulher de Cronos e mãe dos deuses, e depois em Roma em honra de Cybeles, mãe dos deuses. Tal como hoje se conhecem, as comemorações tiveram origem nos EEUU, onde a ideia partiu de Ana Jarvis que em 1904, aquando da morte de sua mãe, chamou a atenção para a criação de um dia especialmente dedicado às mães. Três anos depois, a 10 de Maio, foi celebrado o primeiro dia da Mãe na igreja de Grafton, e começou a campanha para um dia da mãe a nível nacional. Foi tal o êxito, que o Presidente Woodrow Wilson declarou oficialmente o 2º domingo de Maio como o Dia da Mãe. O acontecimento alargou-se a outros países, e hoje em dia, quase todo o mundo celebra o Dia da Mãe, embora em datas diferentes. Em Portugal, depois de muitos anos a ser celebrado a 8 de Dezembro, passou a ter como dia o 1º domingo de Maio.
Para mim o Dia da Mãe continua a ser o dia 8 de Dezembro. Por isso aqui vos deixo um texto poético e dois poemas.

Mãe!
vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei! Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

José de Almada Negreiros, Obras Completas – Poesia,
Editorial Estampa, Agosto de 1971


PARA SEMPRE

Porque Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água puro, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Porque Deus se lembra
- mistério profundo –
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto do seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade


MINHA MÃE QUE NÃO TENHO

Minha mãe que não tenho meu lençol
de linho de carinho de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância

Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
ai fonte que eu não oiço ai mãe ai mel
da flor do campo que me traz à míngua

De que Egito vieste? De qual Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.

Minha mãe que não tenho minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila virgem buda corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
contrói a casa a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

José Carlos Ary dos Santos
In Obra Poética - Edições Avante - 1994

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Cuidado com a língua...

Porra, um destes dias vou mesmo exercer o meu direito à indignação. Eu, que quando garoto me (não) fartei de levar réguadas aplicadas pela minha mãezinha (obrigado Mãe) por, a pensar na brincadeira com os meus amigos, dar muitos erros nas cópias que ela me mandava fazer. Eu, que conforme ia ganhando consciência de que as réguadas eram cada vez menos, quanto menos erros eu desse. Eu, que por isso, passei a saber quanto valem as palavras, me custa ouvir os "bem falantes" (ex: ministros, professores, jornalistas, etc.), aqueles que têm obrigação de ser exemplo para todos, dar pontapés na gramática. Para ilustrar, trago à colação os jornalistas e pivôs da RTP, onde existe um programa que ensina a falar bem, o "Cuidado com a língua", que até já deu origem à publicação de um livro. Mas os maganos e maganas mesmo assim não aprendem. De certeza que não leram o livro. Continuam a dizer priúdo (já nem dizem periúdo) em vez de período, palavra exdrúxula. Continuam a pronunciar "exdruxulamente" metriológico em vez de me-te-o-ro-ló-gi-co. Continuam a ler alcoolémia em vez de alcoolemia. Mas não dizem anémia, os anémicos maganos. De certeza certa, não há por lá ninguém que os corrija. E caros carantonhas, estejam atentos à pronúncia de funcionamento. Ouviram? Que tal? Pelos vistos, falar mal não tem importância! Mãe, estás perdoada!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Pérolas de Sabedoria



Hoje recebi de uma amiga um mail intitulado Pérolas de Sabedoria, que achei interessantíssimo e digno de ser dado a conhecer.Vou deixar aqui algumas dessas pérolas. Acho que devíamos parar por uns instantes e meditar, e desejar que tão sábias palavras sejam música para os nossos ouvidos. Paremos então e meditemos.

"No que mais se diferenciam os pássaros do ser humano,é a sua capacidade de construir mas deixando a paisagem como estava.

Robert Lynnd

"A actividade vence o frio, a quietude vence o calor"

Lao Tsé (séc. VI, A.C)

"O mundo não te deve nada. Existia antes de ti"

Mark Twain

"A primeira flor que nasceu na Terra era um convite à canção ainda não nascida"

Rabindranath Tagore

"Todos estamos de visita neste momento e lugar. Só estamos de passagem. Viemos observar, aprender, crescer, amar, e voltar para casa.

Dito aborígene - Austrália

A propósito desta última pérola lembra-me do que dizia o já meu saudoso amigo, que nos deixou a 31 de Agosto pº.pº, Joaquim Castro Caldas. Espero que lá por onde andes continues a ser " o intérprete da vontade do pássaro", pois como disse o poeta Menandro, "morrem cedo os que os deuses amam". Dizia o Joaquim:- "A vida, são as férias da morte"

Coisas (interessantes) da vida

Coisas da arca do velho! Se é certo que somos o produto das nossas memórias, é também certo que costumamos guardá-las, normalmente bem arrumadas, numa arca que a par com elas vai também envelhecendo. Hoje fui à arca-memória buscar uma história ainda relativamente fresca. Há alguns anos, no departamento da empresa onde trabalhava (hoje sou um jubilado activo), trabalhava também um colega, bom rapaz, amigo do seu amigo, mas sofrendo de um razoável défice cultural e de uma certa dificuldade vocabular para exprimir os seus conhecimentos. Em determinada altura, uma das funções que me calhou-me em sorte, foi supervisionar o seu trabalho. Um dia, porque entendi que determinada tarefa não tinha sido bem executada, pedi-lhe que a corrigisse. Não querendo dar-se por vencido (nem convencido) logo ali começou uma "discussão" que corria o risco de se tornar interminável.Para por fim ao imbróglio disse-lhe: -"Ó M, cala-te.Reduz-te à tua insignificância!" Resposta pronta do M, que achava que devia ter a última palavra: "Cala-te tu, porque a minha insignificância é maior que a tua." E eu calei-me.

O M sabe que de vez em quando conto esta história. Aliás, já a contei na presença dele.
A arca vai continuar aberta, e decerto será a ponte para outras histórias interessantes. Amen

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Lá vai o combóio...


No passado sábado (dia 22) estive em S. Paio de Oleiros, na Biblioteca, a participar em mais uma sessão de poesia, do Quarto Crescente, organizada como sempre pelo Anthero Monteiro. Só que esta foi uma sessão especial. Como no dia seguinte, domingo, se comemorava o Centenário da inauguração da Linha do Vale do Vouga, o nosso amigo Anthero resolveu, e bem, que fosse dita só poesia sobre combóios. A sessão decorreu com o nível habitual que lhe é imprimido pelos residentes e colaboradores da Onda Poética, só que desta vez com mais ritmo, o que a valorizou imenso. Para maior brilho, e nossa satisfação, tivemos até a presença, com farda, boné e apito, do senhor Raul Latada, o último chefe da estação de S. Paio de Oleiros. No final, o que já constitui tradição, o convívio ao redor da mesa com excelentes comes e bebes.
A recordar: A linha de caminho de ferro do Vale do Vouga teve o seu início, no papel, pelo decreto nº15/2 do ano de 19oo e o seu trajecto ía de Espinho a Viseu. O primeiro troço da linha foi construído entre Espinho e Oliveira de Azemeis, e para a explorar foi constituida a Companhia do Vale do Vouga. A inauguração coube ao rei D. Manuel II no dia 23 de Novembro, segunda-feira. A exploração efectiva "com serviço de passageiros, bagagens e cães" teve início no dia 21 de Dezembro seguinte.
Alguns poemas onde se fala de combóios:
AO PASSAR POR ESPINHO
As ruas nasciam
de dentro dos comboios
e seguiam
direitas ao mar.
Os olhos dos meninos
tornavam-se navios
alongavam
todo o novelo do peito
até ao fim da linha azul
do longe.
As casas abriam as janelas
e sorriam
à limpeza do ar.
Mas isso era no tempo
em que os comboios cantavam
com sotaque lento
e pousavam
por vezes
nalgum ramo de pinheiro
enquanto o mundo descansava
de tão longa caminhada.
José Fanha
À ESPERA DO COMBÓIO
Eu esperava serenamente
por um comboio
numa paragem de autocarros
e só chegavam mesmo autocarros
nunca passava um comboio
e entretanto o dia morria
na linha do horizonte do mar
totalmente pintada de vermelho
como sangue esquecido no abismo
Uma senhora de idade perguntou-me
se queria um copo de água
depois de olhar bem para mim
e me aconselhar a procurar
uma estação de comboios
pois ali só paravam autocarros
Também um cavalheiro deu-me
um cigarro e eu não fumo e disse
que se quisesse podíamos conversar
sobre a história de estarmos à espera
numa paragem de autocarros
pela passagem de um comboio
e não de um autocarro qualquer
Eu sabia que o cavalheiro e a velhinha
só me queriam ajudar a olhar mais atentamente
para a realidade que me rodeava
porém não podia aceitar nenhuma
das suas educadas propostas
porque a minha realidade estava definida
e esperava por um comboio
numa paragem de autocarros
e ninguém tinha nada a ver com isso
Na verdade eu só decidira experimentar
a sensação de esperar por um comboio
numa ilha onde apenas existem autocarros
observando o crepúsculo
sem ter outras coisas para fazer
José António Gonçalves (Madeira)
(inédito.06.09.04)

terça-feira, 18 de novembro de 2008

As Avós

Vamos lá ver se nos entendemos. Calma, carantonhas, eu explico.O que se segue ainda não dá para que eu exerça o meu direito à indignação, mas... Passo a explicar. Anda aí pela net, em sitios e blogs, mais nestes do que naqueles, um texto sobre as Avós, com a informação de que foi publicado no Jornal do Cartaxo e escrito por uma menina de 8 anos. Já o vi também como tendo sido escrito por um menino de 9 anos. Nada mais falso. Espantem-se ou acreditem se quiserem, quem começou a divulgar esse texto em sessões de poesia, fui eu, o Carantonha-Mor. Pois é. Continuo a explicar. Quem me deu a conhecer esse texto foi o meu amigo poeta (infelizmente, para ele, bancário no activo) Nelson Ferraz, que o encontrou publicado no Almanaque de Santo António de 1995 (pág. 249, referente ao mês de Outubro), que mo ofereceu. Desde essa data, passei a divulgá-lo, como já disse. Explicando melhor: esse texto sobre as avós, tem origem numa publicação chamada Enfants de Partout, e foi elaborado por crianças de 8 anos, de Genebra. Como é que ele aparece na net?. Nas minhas sessões de poesia, havia sempre alguém que achava o texto interessante e mo pedia (por isso eu levava sempre comigo vários exemplares). E assim o texto foi dado a conhecer a muitas pessoas dos mais variados locais... Pormenor interessante: o texto foi muito utilizado pela senhora de Penafiel (já falecida) que começou com a campanha para instituir o Dia dos Avós (e conseguiu). Tudo explicado? Quase... Um pormenor: se, num motor de busca procurarem as Avós, o texto aparece como sendo da criança de 8 anos, do Cartaxo, ou sem menção de autoria. Se procurarem por Enfants de Partout, o texto aparece com a menção de autoria, que constava dos impressos que eu dispensava. Espero que tenha por uma vez ficado esclarecido o assunto.
NOTA: Enfants de Partout é uma revista que se publica em Paris, quatro vezes por ano, e é um orgão do BICE-Bureau International Catholique de l'Enfance, que se dedica à divulgação e protecção dos direitos da criança.

E agora o texto:

AS AVÓS

Uma avó é uma mulher que não tem filhos; por isso gosta dos filhos dos outros.
As avós não têm nada que fazer é só estarem ali.
Quando nos levam a passear, andam devagar e não pisam as folhas bonitas nem as lagartas.
Nunca dizem: despacha-te. Normalmente são gordas, mas mesmo assim conseguem atar-nos os sapatos.
Sabem sempre que a gente quer mais uma fatia de bolo, ou uma fatia maior.
Uma avó de verdade nunca bate numa criança; zanga-se, mas a rir.
As avós usam óculos e às vezes até conseguem tirar os dentes.
Quando nos lêem histórias nunca saltam bocados e não se importam de contar a mesma história várias vezes. As avós são as únicas pessoas grandes que têm sempre tempo.
Não são tão fracas como elas dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós.
Toda a gente deve fazer o possível por ter uma avó, sobretudo se não tiver televisão.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Preto e Platero

Lá em casa, na aldeia, houve há muitos anos um burro que, quanto me recordo, não tinha nome, ou se o tinha era Preto. O Preto era um animal dócil, e afável, benquisto e acarinhado por todos lá em casa. Acabou por morrer não de velhice, mas de doença. Uma infecção vitimou-o, deixando em todos nós um sentimento de tristeza.
Lembrei-me do Preto quando agora reli "Platero e eu" do escritor e poeta Juan Ramón Jimenez. É um dos meus livros preferidos apesar de só ter tido a oportunidade de o ler já a juventude tinha ficado para trás. Confesso que a sua singeleza, a sua ternura, o bucolismo e o ambiente idílico retratados, me encantaram. Direi mesmo que me emocionei ao lê-lo, particularmente quando chegou o momento de encarar a morte de Platero. Talvez por já terem passado alguns anos e porque a vida tenha calcinado algumas emoções, a sua releitura já não me provocou a mesma reacção. No entanto, continua a ser um dos meus livros preferidos. Fica aqui um pouco do "Platero e eu".
"Platero, é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro.
Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia levemente com o focinho, mal as roçando, as florinhas róseas, azuis-celestes e amarelas...
Chamo-o docemente: «Platero», e ele vem até mim com um trote curto e alegre que parece rir em não sei que guizalhar ideal...
...........
ASNOGRAFIA
Leio num dicionário: «Asnografia: s. f.: diz-se, ironicamente, da descrição do asno».
Pobre asno! Tão bondoso, tão nobre, tão inteligente como nós! Ironicamente... Porquê? Nem uma descrição séria mereces tu, cuja descrição exacta seria um conto de Primavera? Se ao homem que é bom deveriam chamar asno! Se ao asno que é mau deveriam chamar homem! Ironicamente... De ti, tão intelectual, amigo dos velhos e das crianças, dos regatos e das borboletas, do sol e dos cães, das flores e da lua, paciente e reflexivo, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados...
Platero, sem dúvida compreende, olha-me fixamente com os seus grandes olhos brilhantes, de uma serena firmeza, onde o sol brilha, diminuto e refulgente, num breve e convexo firmamento negro. Ai! Se a sua peluda cabeçorra idílica soubesse que eu lhe faço justiça, que eu sou melhor que esses homens que escrevem Dicionários, quase tão bom como ele!
E escrevi à margem do livro: «Asnografia: s. f.: deve dizer-se, com ironia, claro está!, da descrição do homem imbecil que escreve dicionários».
Confesso que se tivesse possibilidade, gostava de ter um burro, como o Platero ou como o saudoso Preto.
Se ainda não leram "Platero e eu", espero que este trecho do livro vos incentive.

Juan Ramón Jimenez nasceu em Moguer, Andaluzia, em 23 de Dezembro de 1881, filho de uma família abastada. Fez os estudos secundários no colégio jesuíta de Porto se Santa Maria. Estudou direito em Sevilha, por vontade do pai, e pintura, por vontade própria.Começou a ler os poetas espanhóis mais famosos da época. Foi para Madrid em Abril de 1900. A morte repentina do pai causou-lhe um traumatismo para toda a vida: o pavor da morte súbita e o consequente desejo de ter sempre um médico perto de si. Mudou-se para Porto Rico em resultado de sucessivas viagens e hospitalizações por motivo das frequentes depressões nervosas. Juan Ramón Jimenez ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1956 e morreu a 29 de Maio de 1958.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

No dia de São Martinho vai à adega...

“No São Martinho vai à adega e prova o vinho”. “No dia de São Martinho, mata o teu porco, chega-te ao lume, assa castanhas e prova o teu vinho”. “No dia de São Martinho come-se castanhas e bebe-se vinho”. Tudo isto é verdade, mas não tem qualquer relação directa com o Santo. Só que é no tempo frio que se mata o porco e é na altura das festividades em honra do santo que o vinho atinge a sua maturidade e está pronto a ser bebido. Daí o aproveitamento pagão da quadra.
Martinho nasceu no então império romano, em Panónia, hoje Hungria entre 315 e 317. Era filho de um soldado romano e como mandava a tradição, filho de militar segue a vida militar. Entrou para o exército aos 15 anos e chegou a cavaleiro da guarda imperial. Vem desse tempo a mais conhecida lenda sobre o santo. Num dia de rigoroso Inverno, com chuva e trovoada, Martinho seguia a caminho de França, e então apareceu-lhe um homem muito pobre, meio desnudado e cheio de frio, que lhe pediu uma esmola. Martinho não tinha nada para lhe dar e então com a espada rasgou a sua capa ao meio, deu metade ao pobre e seguiu o seu caminho. Os seus camaradas de armas riram-se dele, por ficar com a capa rasgada. Este facto presume-se como verdadeiro. È aqui que entra a lenda. Foi então que a tempestade parou e um sol quente e radioso surgiu no céu. Foi o sinal do céu para compensar a bondade e as qualidades humanitárias do Santo. Daí a expressão “verão de São Martinho”. A partir desse dia Martinho começou a olhar para os cristãos de outro modo, sente-se um homem novo, é batizado em 337 ou 339 e dedica-se então a pregar o amor entre todos, pois percebe que os outros não são seus inimigos mas seus irmãos. O seu exemplo de despojamento leva a que o considerem santo. É na realidade o primeiro santo não mártir.

Deixo-vos aqui algumas quadras populares relacionadas com o santo e com as festividades pagãs:

S. Martinho ao dar a capa
Não teve frio, em verdade
Pois nada aquece melhor
Que o fogo da caridade

Tua capa S. Martinho
Deu calor a mais alguém.
Quantos com capa maior
Não agasalham ninguém.

S. Martinho ao fazer bem
Foi poeta com certeza!
- Faz poesia também
Quem sabe amar a pobreza

S. Martinho com a espada
Cortou sua capa ao meio,
Mas quanta língua danada
Só corta o casaco alheio.

Nem com capa a gente escapa
S. Martinho nesta vida:
Dona castanha tem capa
E mesmo assim é comida

No dia de S. Martinho
Olhei-te e não te esqueci.
Fui à feira atrás do vinho,
Vim da feira atrás de ti.

Se quem bebe muito vinho,
S. Martinho, faz pecado,
Tenho o inferno certinho,
Mas vou p’ra lá consolado!

Deu S. Martinho o capote
Ao pobre, por caridade.
Se ele visse o teu decote
Dava-te, ao menos, metade.

S. Martinho se viesse
A este mundo outra vez,
Não tinha pano que desse
P’ra tapar tanta nudez.

As tuas saias, Maria,
De curtas, subiram tanto,
Que S. Martinho até disse;
- Já não se pode ser santo.

sábado, 8 de novembro de 2008

A dúvida

A dúvida instalou-se na minha cabeça.
É o tempo. "O tempo passa por nós...". É esta a dúvida. É o tempo que passa por nós, ou somos nós que passamos pelo tempo? Mesmo duvidando, quer-me parecer que somos nós que passamos. Pois se o tempo está sempre cá! Nascemos, crescemos, partimos. Cá está, partimos. Partimos do tempo que fica, está cá sempre, ainda que cada um tenha o "seu tempo". Ter "o seu tempo", "no meu tempo", no "vosso tempo", é a pequena parcela que ocupamos e que é mensurável de modo diferente para cada um. Ah, também medimos o tempo! "Do fundo do tempo". Como disse António Gedeão, "venho do fundo do tempo, não tenho tempo a perder". O tempo também tem fundo! Mas não tem cimo, isto é, não tem fim. É infinito. Lógico.
"Estamos aqui a matar o tempo". Matar o tempo? Se o matarmos não ficamos sem ele? A dúvida persiste e continuo sem saber a resposta. Mas o tempo também não tem resposta para a minha dúvida. Duvidam? Então vejam! O tempo perguntou ao tempo/ quanto tempo o tempo tem/O tempo respondeu ao tempo/que o tempo tem o tempo que o tempo tem. Outra dúvida: será que o tempo tem passado, presente e futuro? Hoje deu-me para filosofar, que querem!
Como diria Álvaro de Campos " por amor de Deus, parem com isso dentro da minha cabeça!"

TEMPO DE POESIA

Todo o tempo é de poesia.

Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.

Todo o tempo é de poesia.

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.

Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.

Todo o tempo é de poesia.

Desde a arrumação do caos
á confusão da harmonia.


FALA DO HOMEM NASCIDO
(Chega à boca de cena, e diz:)

Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
S´quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me me molestem,
correntes que me detenham.
Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

António Gedeão, Obra Completa,
Relógio D'Água Editores

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

"Pior a amêndoa que o cimento"


Há já uns bons anos, integrei um grupo de teatro de amadores, numa vila, hoje cidade, fronteira com a cidade onde vivo. O grupo era heterogéneo em termo de profissões e culturalmente (ainda que saibamos que cultura é também o saber de experiência feito) muito diversificado também. Havia até alguns elementos com uma dose elevada de (como agora se diz) iliteracia. Entre eles o A, indivíduo que roçava a boçalidade, que era um convencido e tinha um defeito de linguagem marcante. Trocava o b pelo v. Em dada altura preparávamos uma peça do brasileiro Dias Gomes, a Invasão, cujo tema era precisamente a invasão de um prédio em construção, por gente das favelas. O A fazia o papel de um polícia. Um dia, no sentido de convencer aquela gente a abandonar o prédio, o chefe da polícia acompanhado pelo A, vai falar com os ocupantes. Depois da intervenção do chefe, o A dava a sua deixa, uma única frase, mais ou menos isto (cito de memória): “Saiam todos, senão vão para o albergue”. Ora como o nosso A trocava os s pelos vês, o albergue saiu alvergue. O encenador ouviu, parou o ensaio, e corrigiu. Continuou o ensaio. Voltou a sair alvergue. Mais uma ou duas vezes. O encenador E, constatou a persistência no erro, mandou parar, pensou, e disse: “ A, em vez de albergue, vais dizer asilo”. “Está bem senhor E”. E então saiu esta coisa linda: “ Saiam todos, senão vão para o asilio” Ora toma que já almoçaste!

TEATRO

Na sala vazia sentaram-se os quatro.
E os quatro ficaram olhando, no fundo,
a mancha de luz do pequeno teatro.

- O dono do teatro – um vagabundo
que trouxera o teatro do outro lado do mundo –
por trás das cortinas puxava os cordéis…
Puxava os cordéis aos fantoches, fiéis
aos seus dedos infiéis de vagabundo.
……………………………………………………………….
Dos quatro meninos, um deles voltou,
e, tanto viu, que decorou
as falinhas mansas e a maneira
invertebrada dos fantoches de feira.

De dois dos meninos ninguém mais falou,
(e o outro é Poeta e ninguém lhe perdoa…)
mas do menino fantoche como é bom falar…

- porque o menino fantoche é hoje a pessoa
mais importante do lugar.

Sidónio Muralha, in Passagem de Nível
Novo Cancioneiro, Editorial Caminho, 1989



TOMA TOMA TOMA

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.

O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada história
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral da classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.

Alexandre O’Neill, Poesias Completas (1951/1986),
Imprensa Nacional – Casa da Moeda




segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Anúncio



O Teatro da Carantonha anuncia que a sua estrutura

"Encantadores de Palavras", está prontinha e disponível

para se deslocar a casa dos carantonhas que o desejem,

levando no alforge poemas e outros textos. É aproveitar

carantonhas!. No quente do lar, sabem bem uns poemas e

algumas cantigas, acreditem. As condições de deslocação

são estabelecidas caso a caso. Ficamos à espera.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Hoje é o Dia das Bruxas. Em Portugal, e nos países de língua portuguesa, porque nos países de língua inglesa, onde esta tradição surgiu, designa-se por Halloween, e corresponde à véspera do dia de Todos os Santos. O Dia das Bruxas surgiu como um acontecimento lúdico e cultural, que hoje, mesmo nos países onde a tradição está arreigada já tem muito de comercial. A origem do Halloween remonta às celebrações pagãs dos antigos povos celtas e tem origem na celebração chamada Samhain que marcava o fim do Verão e tinha por objectivo cultuar os mortos. Os celtas acreditavam que no Halloween as almas dos mortos voltavam aos lugares onde tinham vivido, por isso mascaravam-se e dançavam para afastar os espíritos. Em muitos outros países o culto dos mortos também se celebra nesta época, embora de modos diferentes. Hoje, o Dia das Bruxas tem pouco a ver com as suas origens, tornando-se numa data de divertimento. O símbolo do Halloween é hoje uma abóbora, mas começou por ser um nabo. Mudou quando os irlandeses, autores da tradição, chegaram aos EE.UU. e viram que as abóboras eram mais abundantes e passaram a usaram-nas iluminadas com uma brasa.
Em Portugal o culto aos mortos está ligado à Igreja Católica, e remete para o Dia de Todos os Santos, um dia sagrado, e no qual se presta homenagem aos santos e mártires cristãos. A parte pagã da tradição entra aqui com as crianças, que em grupos saem à rua a pedir de porta em porta o pão – por - Deus, cantando, e recebem pão, romãs, frutos secos, e até enchidos. Em algumas regiões oferece-se um bolo chamado Santoro. Quando miúdo também cantei os santoros e na minha região até ofereciam dinheiro.

Xácara das bruxas dançando

1
Era outrora um conde
que fez um país,
com sangue de moiro,
com laranjas de oiro,
como a sorte quis.

Há bruxas que dançam
quando a noite dança,
são unhas de nojo,
são bicos de tojo,
no tambor da esperança.

Ventos sem destino
que dizeis às ramas?
Desgraça bramindo
é a nós que chamas.

No país que outrora
um conde teceu,
as laranjas de oiro
são bruxas de agoiro
e fúrias do céu.

Anda o sol de costas
e as bruxas dançando
e os ventos do norte
sobre nós espalhando
as tranças da morte.

As estrelas mortas
apagam-se aos molhos:
vem, lume perdido,
florir-nos os olhos.

3
Ó castelos moiros,
armas e tesoiros,
quem vos escondeu?
Ó laranjas de oiro,
que vento de agoiro
vos apodreceu?

Há choros, ganidos,
à luz da caverna
onde as bruxas moram,
onde as bruxas dançam
quando os mochos amam
e as pedras choram.

Caravelas, caravelas,
mortas sob as estrelas
como candeias sem luz.
E os padres da inquisição
fazendo dos vossos mastros
os braços da nossa cruz.

As bruxas dançam de roda
entre o visco dos morcegos,
dançam de roda raspando
as unhas podres de tojo
na noite morta do povo
como num tambor de rojo.

Carlos de Oliveira, in Trabalho Poético
Editora Sá da Costa, s/data

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Com o teu olhar

Nelson Ferraz, meu amigo, continua a porfiar na arte da escrita, que domina com mestria. Nas suas crónicas, por vezes pontuadas de ironia, sarcasmo, mas também de alguma poesia, dá-nos com rigor a sua visão certeira do mundo que o (nos) rodeia. A sua poesia luminosa, construída em metáforas, reconforta-nos e encanta. Quando escreve, seja crónica ou poesia, “as imagens, as letras, as dores, os risos, a fúria e a paixão, a água e o fogo, estavam ali”. E ainda mais “o texto brotava do coração, e lânguido e terno, derramava-se na poeira, limpa, das ametistas desenhadas e inventadas no papel”(*). É assim que o Nelson escreve, que sente a escrita.
O texto que se segue, do qual eu gosto particularmente, demonstra-o. Será uma prosa poética, ou um poema em prosa?. Melhor, é um prosema.

(*) O texto entre aspas e em itálico, faz parte de uma crónica, “Texto”, que consta do seu livro de crónicas À Esquerda de Deus.


COM O TEU OLHAR

responde-me com o teu olhar.
só com o teu olhar. onde quer que estejas.
responde-me com o teu abraço que me conforta este tempo
confuso de andar por aí
por mim a dentro
fugindo à chuva brava da noite escura.

procura para mim aqueles que gostam de Brel que não se esqueceram de Liszt.
procura para mim os tocadores de piano que dizem adeus enquanto envelhecem
aqueles que vão morrendo nos calendários com Chopin nos dedos
e que não choram e que não sabem chorar quando a alma parte definitivamente partida em pedaços de som e de êxtase.

encontra para mim quem ainda saiba andar descalço sobre o chão
descalço assim sem mais nem menos sem medo dos bichos das febres e do absurdo.

procura então quem se lembre…

será que alguém se lembra ainda da agonia e da barafunda de partir para uma guerrilha lá longe e de voltar
e da alegria de voltar e da alegria de quem nos vê voltar
e que depois desaparecem e que depois…
já são outros que não são nossos e que são quase estranhos a esperar-nos?

e são estranhos quase para sempre e que têm poucos beijos para nós
e nós estamos sós entre milhões de companhias que não são companheiros.
dois instantes depois partimos o coração que era branco e ganhamos uma sombra desconfiada entre o peito e a vida.

encontra para mim aquele anjo
o único anjo que existe
e que dormia todas as noites no telhado da minha casa.
aquele anjo que ainda sinto hoje todas as noites aos pés da minha cama com a voz calma de quem não sabe nunca abandonar-me ao frio de histórias outras.

conta-me uma história ou fala-me da vida. só mais uma vez mas para sempre se puderes.

procura para mim aquele eu que se escondia entre os jarros as rosas as sardinheiras e os trevos em vasos que se encostavam à torneira do pátio.
diz-me que está calor que os pássaros sabem as árvores e os regatos sabem as águas e que o vento que por aí ronda é apenas mais um bocado de saudade que não sabe para onde ir.

responde-me com o teu olhar:
ainda me conheces?

Com a devida vénia ao Nelson Ferraz e ao Jornal “MaiaHoje”,
onde foi publicado em 27-06-08

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Aviso

Aos carantonhas interessados, com o pedido de que sejam compreensivos.Por um qualquer daqueles truques em que os PC's são férteis, e que não consegui contrariar, o texto aí em baixo saiu compactado. O poema é em quadras, como muitos saberão. Já que o PC não pede desculpas (diz-se que o material tem sempre razão) faço-o eu por ele. Pois.

OUTONO

Dos dicionários: estação do ano que começa em 22 de Setembro e termina a 21 de Dezembro. Colheita. (Fig) Decadência. Idade que precede a velhice: o outono da vida. (Pl.pop.)Cereais que se semeiam no outono. O Outono é o tempo que decorre entre o equinócio de Outono e o solestício de Inverno.
Outono, tempo em que a terra se deixa domar para que dela se extraiam os filhos que criou - as colheitas. Tempo de se abrir de novo para acolher novas sementeiras. Mas também tempo de fulvas claridades. Tempo de sonhar, de nos deixarmos embalar pela mornidão do tempo.
Outono, tempo do cair das folhas. Tempo de caminhar para o fim. Tempo de penumbra, tempo também de alguma solidão.
Outono, tempo de nostalgia, tempo de chegada das primeiras chuvas, depois da luz intensa do verão. Tempo de olhar para trás, tempo de balanço, tempo de encarar o fim com a tranquilidade que nos vem da experiência.
Outono, tempo de histórias contadas ao borralho enquanto nos comprazemos com o calor do madeiro que arde lentamente,até que na cinza quente possam ser depositados esses frutos deliciosos, as castanhas (pergunto eu: será que ainda há borralhos? Talvez mais fogões de sala)
O Homem das castanhas
Na Praça da Figueira ou no Jardim da Estrela
num fogareiro aceso é que ela arde
ao canto do Outono à esquina do Inverno
o homem das castanhas é eterno
Não tem eira nem beira nem guarida
e apregoa como um desafio
é um cartucho pardo a sua vida
e se não mata a fome mata o frio.
Um carro que se empurra um chapéu esburacado
no peito uma castanha que não arde
tem a chuva nos olhos e tem um ar cansado
o homem que apregoa ao fim da tarde
Ao pé de um candeeiro acaba o dia
voz rouca com o travo da pobreza
apregoa pedaços de alegria
e à noite vai dormir com a tristeza.
Quem quer quentes e boas quentinhas
a estalarem cinzentas na brasa
Quem quer quentes e boas quentinhas
Quem compra leva mais calor (amor) para casa.
A mágoa que transporta é miséria ambulante
passeia na cidade o dia inteiro
é como se empurrasse o Outono distante
é como se empurrasse o nevoeiro.
Quem sabe a desventura do seu fado?
Quem olha para o homem das castanhas?
Nunca ninguém pensou ali ao lado
ardem no fogareiro dores tamanhas.
José Carlos Ary dos Santos in As Palavras das Cantigas,
Edições Avante, Novembro de 1989

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A mão de Deus

Hoje reli algumas crónicas do livro de crónicas "À Esquerda de Deus", do meu amigo Nelson Ferraz. Depois da releitura, e porque falava em Deus, lembrei-me de um poema do primeiro livro de Fernando Tordo, "Quando não souberes copia" no qual (poema) o cantor dá um valente puxão de orelhas a Deus.
Aqui fica o poema. Julguem-no. Ou julguem o autor. Ou julguem este carantonha, que o deu à estampa. Estejam à vontade.

8.
A linha do horizonte faz uma curva perigosa e está fora de mão.
A linha do horizonte, afinal, é um embuste linear e um veículo mal conduzido.
Quem lhe deu esta grandeza esqueceu-se de que lhe estava a dar todo o poder.
Ouviste, Deus?, é contigo .
Ou será que te enganaste e não percebeste que o horizonte não é para se ver de cima?
Já não é a primeira vez que te apanho em falso.
Repara nos homens.
Nas guerras.
Na fome.
Nos incêndios e nas cheias.
Queres pior?
Repara na mentira.
Queres um resumo? Repara em ti.
Já sei, já sei. Para estes casos tu não és nenhuma entidade superior,
tu és dentro de cada um de nós.
Mas a multa do horizonte fora de mão, essa pagas tu.

Do livro "Quando não souberes copia", edição CAMPO DAS LETRAS, 1ª edição, Maio de 1997

sábado, 18 de outubro de 2008

O que aprendeste hoje na escola...

Hoje, como aliás faço várias vezes, fui dar mais uma olhada ao blog http://queridasbibliotecas.blogspot.com/ do José Fanha, onde sempre encontro boa poesia dele ou de outros autores. Por vezes não resisto mesmo a "roubar" um ou outro poema que costumo utilizar na minha actividade de dizedor.Desta vez deparei com um video do Pete Seeger onde canta uma letra do Tom Paxton, What Did You Learn in School Today, e o poema, no original. Como o poema continua com uma actualidade flagrante, lá, aqui, ou em qualquer parte, não resisti a "roubá-lo", - e espero que o José Fanha me desculpe mais esta ousadia -, e traduzi-lo, utilizando os meus pobres conhecimentos de inglês. Mas fica aí também o original. O José Fanha comenta que "qualquer semelhança com a realidade talvez não seja pura coincidência". Eu direi que qualquer coincidência com a realidade não é pura semelhança. Pois.

O que aprendeste hoje na escola
(Tom Paxton, cantado por Pete Seeger)

O que aprendeste hoje na escola, meu querido menino?
Aprendi que Washington nunca mentiu
Aprendi que os soldados raramente morrem
Aprendi que toda a gente é livre
Foi isso o que o professor me disse
E foi isso que eu aprendi hoje na escola
O que eu aprendi na escola

O que aprendeste hoje na escola meu querido menino?
Aprendi que a gueera não é assim tão má
Aprendi que a justiça nunca acaba
Aprendi que os assassinos morrem pelos crimes que cometem
Ainda que nós erremos algumas vezes
E foi isso que eu aprendi hoje na escola
O que eu aprendi na escola

O que aprendeste hoje na escola, querido menino?
Aprendi que a gurre não é assim tão má
Aprendi acerca dos notáveis que tivemos
Lutámos na Alemanha e em França
E qualquer dia eu terei a minha oportunidade
Foi isso que aprendi hoje na escola
O que eu aprendi na escola

O que aprendeste hoje na escola, querido menino?
Aprendi que o nosso governo deve ser forte
Está sempre certo e nunca erra
Os nossos chefes são os melhores
Por isso os elegemos sempre e sempre
Foi isso que eu aprendi hoje na escola
O que eu aprendi na escola

What Did You Learn in School Today
(Tom Paxton cantado por Pete Seeger)

What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learned that Washington never told a lie
I learned that soldiers seldom die
I learned that everybody's free
That's what the teacher said to me
And that's what I learned in school today
That's what I learned in school

What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learned that policemen are my friends
I learned that justice never ends
I learned that murderers die for their crimes
Even if we make a mistake sometimes
And that's what I learned in school today
That's what I learned in school

What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learneds that war is not so bad
I learned about the great ones we have had
We fought in Germany and in France
And some day I might get my chance
And that's what I learned in school today
That's what I learned in school

What did you learn in school today, dear littlr boy of mine?
I learned that our government
must be strong
It's always right and never wrong
Our leaders are the finest men
So we elect them again and again
And that's what I learned in school today
That's I learned in school

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Dia Mundial da Alimentação

Comemora-se hoje o Dia Mundial da Alimentação.Gostaria de vos dizer, caros carantonhas, que sou um bom garfo, posso dizer que tenho o prazer da mesa, mas que não sou guloso. Uma boa refeição, acompanhado de boa gente, seja família ou amigos, é algo que nos reconforta e nos lava a alma. Não venho aqui dar-vos conselhos, mas tão só desejar que sejam racionais e comedidos quando se sentam à mesa. Mas vou ousar recomendar-vos que hoje se empanturrem, não com comida mas com poesia, sem o receio de que tenham uma indigestão. Então vá, sentem-se à mesa e deliciem-se. Podem dar e baralhar, e como aqui a ordem dos factores (isto é, os pratos, melhor dizendo, os poemas) é arbitrária, podem até começar pela sobremesa e acabar no peixe.

Nota: quis deixar-vos aqui a nova roda dos alimentos para vos ajudar a escolher os alimentos, mas por causa de um qualquer erro que não me foi possível resolver ficam só os poemas.Como costumo dizer, fiquem bem e façam o favor de se portar mal.

POESIA À (OU NA) MESA

*******
Dá a surpresa de ser.
È alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ò fome, quando é que eu como?

Fernando Pessoa (Antologia Poética, da Editora Ulisseia)


DE TARDE

Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela
E que, sem ter histórias nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via:
e houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde (De O Livro de Cesário Verde, citado de cor)


Diospiros

Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder

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Nem todos os frutos vermelhos
merecem o céu
de tua boca.

(Dois poemas de Jorge de Sousa Braga, do livro Balas de Pólen,
in Poesia à Mesa – Antologia, da quasi Edições)
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Soneto C/IVA

Pedi dois cafés sorrindo
que não era normal
trouxeram-me um duplo.
o néctar de pêra veio de pêssego.
a mágoa das pedras pode ser Vidago?
o bife saignant saiu trop cuit.
não tinha mais trocado
não me disseram bom dia.
não deixei gorjeta
puseram-me na rua.
fui para casa ler a Dobrada
à Moda do Porto do Pessoa
nem sem antes pedir o livro
de reclamações que não havia.

Joaquim Castro Caldas, do livro Convém Avisar os Ingleses
in Poesia à Mesa – Antologia, da quasi Edições
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FRUTOS

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música dos meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.

Eugénio de Andrade, de Poesia, in
Poesia à Mesa- Antologia da quasi Edições


porco trágico I

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.

o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.

Alberto Pimenta, de Obra Quase Incompleta,
in Poesia à Mesa- Antologia, da quasi Edições

*********

Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra;
um dia encontraram-se num caminho muito estreito,
e devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra
não ficou nada.
Esta história tradicional demonstra que se deva amar o próximo,
ou então ter muito cuidado com o que se come.

Ana Hatherly, do livro Tisanas, citado de cor

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Nem só de pão vive o homem

Quando jovem, estudei no Instituto Comercial do Porto (ICP), hoje ISCA, do qual era director um engenheiro da hoje extinta UEP- União Eléctrica Portuguesa. Não recordo do nome do dito director, mas tenho bem presente a imagem fisica, quase ridícula, do mesmo. Os carantonhas que andam pelos quarenta e tal, cinquenta e pico, sessenta e qualquer coisa, se tinham e têm o hábito de ler jornais, lembrar-se-ão de uma tira de BD publicada no Primeiro de Janeiro, o Reisinho, personagem pequena e gorda. Assim era também o nosso director. Conhecido entre os alunos por Reisinho, por duas razões: por ser o director- o rei - e por ser gordo e baixo como a personagem dos quadrinhos. Ora, o nosso director, na cerimónia de abertura do ano escolar, utilizava sempre a mesma expressão ao iniciar o seu discurso de boas vindas: "Nem só de pão vive o homem, mas também vive de pão". Aqui chegado, e parafraseando o director, direi também que "nem só poesia vive este blog, mas também vive de poesia". Se aí em baixo já aparece um ou outro poema, é tempo de trazer aqui a boa poesia de dois antigos colegas e meus amigos pessoais, a qum muito estimo: a Maria Mamede e o Nelson Ferraz, os dois já com vários livros publicados.



Maria Mamede



Cartas



Quando te escrevo, meu amor

E nunca te escrevo,

Vai a minha alma inteira

Nessas linhas

E escrevo palavras comezinhas

Sem encanto, sem esplendor

Sem poesia,

Palavras

Sem prata de luar

Sem luz do dia

Palavras,

Onde a noite principia

Nas sombras qu dou

A qualquer carta;

Quandop te escrevo, meu amor

Nada te digo

De saudade de ti, de nós

Do mundo

Nem falo

Do luto profundo

Que habita cá dentro

Em minha voz

Nas palavras que calo

Que não canto;

Ayh meu amor

Como dói tanto

Calar

Nas cartas que não escrevo

As notícias que tenho p'ra te dar!

Mas sei

Que as cartas que não escrevo

O vento tas irá levar!..



Amanhã



Quando em mim se enrosca esta agonia

De dor lancinante e sem sossego

É a ti que me agarro e apego

Para ouvir: "Amanhã é outro dia!..."



Quando a noite chega e é fantasia

Num sonho que não quero e que renego

Tu dizes: "Amanhã, é outro dia!"

E a ti me agarro e apego.



Não tires a mão da minha mão

Não deixes de ser a condução

Que necessito p´ra seguir confiante...



Não te apartes de mim; ando sem norte

Nesta vida sê meu braço forte!

Vai negra a noite p´lo futuro adiante!...



Estes dois poemas constam da Antologia DEZSETE da

Edium Editores



C



Sempre que imaginava

Cobria-te de estrelas

E vai-te

Cavalgando um cavalo de vento

Que de crinas soltas, negras como a noite,

Desaparecia no espaço

Voando até outras galáxias...

Agora, que te conheço,

Cubro-te de Sol,

E coroo-te de miosótis!

(Azul e oiro sempre formaram uma combinação perfeita).

Claro que o nosso romance há-de acabar;



Nessa altura, voltarei a cobrir-te de estrelas,

Mas levarei comigo os miosótis!...



Do livro Pelas letras do alfabeto



Nelson Ferraz



Costumava procurar-te no ébano da ausência.

Não te encontrava nunca na tarde.

Nem nas gotas aveludadas na chuva nos vidros das janelas.

Nem em lado nenhum dos meus passos.


Já nesse tempo me apetecia escrever-te.

Já nesse tempo me apetecia gostar de ti.

Por isso podes imaginar a alegria que tenho agora.

Agora que te tenho na borda da minha alma.


Fizeste das minhas horas

Um ramo de momentos de oiro

E ficaste de mão dada

Às páginas dos meus sonhos


Deixa-me dizer-te mais uma vez que te amo.


Da micro colecção PINGUIM POESIA EM PÓ


A VONTADE


A vontade entricheirou-se no poente

E tudo vai ser diferente

A partir deste verso


O homem desinventou a mensagem

Mas não abranda nunca a sua foice


Por isso, os cadernos e as searas

Vão ser sempre uma viagem

Onde o vento vai ser notícia


E no coração rebelde e submerso

Do papel e dos livros

Vai nascer, um dia destes, a inquietude

De quem não desiste das perguntas


Porque a vontade é um falcão

Uma semente de manhã

Do livro As palavras côncavas-Editora Ausência

Eu tinha uma montanha

azul como as calças de um palhaço

cheia de flores

azuis como olaço de um palhaço

um dia convidei o palhaço

para visitar a minha montanha

e o palhaço vestiu-se todo de azul

e foi

foi um dia lindo

azul como o casaco daquele palhaço

mas o tempo foi passando

azul como tude de um palhaço

e a montanha desapareceu

azul como a saudade de um palhaço

eu tinha uma montanha

azul como a história de um palhaço

cheia de sonhos

azuis como as lembranças

um dia vieram outras cores

para pintar a montanha

e o palhaço escondeu-se no azul

e foi

foi à procura de uma página

azul onde coubesse a vida toda

De Novíssimos, Antologia-Editora Ausência

Aqui ficam alguns poemas da Maria Mamede e do Nelson Ferraz. É só uma pequena amostra daquilo que eles são capazes de fazer. Usem-nos (aos poemas), mas não os abusem (os poemas)



domingo, 12 de outubro de 2008

Última hora!

Acabo de saber pelo Nico, regressado da reunião no Tinoco, que entre as várias resoluções, uma houve que os deixou satisfeitos. Num telefonema a RR, o gatão -mor, presidente da câmara, este prometeu enviar ao tribunal uma providência cautelar, no sentido de embargar a obra. Se não resultar, já está apalavrada com os gatos de todo o mundo, incluindo persas e siamêses, uma reunião magna com o fim único de mijarem nos alicerces, para os alagarem.

Viva a gataria da cidade! Um dia destes ainda vou aparecer no Tinoco.

Aqui há gato(s)...

Anda tal "miaria" (inventei agora mesmo) cá pelo bairro que resolvi montar nas minhas tamanquinhas e ir ver o que se passava. Fui à procura do Nico ( o meu gato) para ver se me esclarecia. Quando o encontrei estava ele em grande conversada com o Cocas e oYellow (são os dois que diariamente aparecem cá em casa para comerem a ração seca) e no momento em que abria a boca para o interpelar, ele, "xchiu, espera, estamos em conciliábulo". Como o meu gato já fala bem e bonito, esperei. Veio depois a explicação. "Que estavam a definir estratégias para a reunião de logo à noite no Tinoco, o clube da gataria da cidade" A reunião tinha sido convocada pelo Mago(*), sabedor pela D. Maria da Glória Sância, a sua dona, da intenção de deitarem abaixo o Tinoco, a fim de construirem no local um condomínio fechado. Vai daí, há que convocar toda a gataria, mesmo os estrangeiros e os e as das histórias tradicionais. Já tinham confirmada a presença do Gato das Botas, do Garfield, dos gatos e gatas do Livro dos Gatos de T. S. Eliot, pois nesta altura já estavam libertos do musical Cats, mas que apesar da recessão tinham resolvido, num gesto de corporativismo associativo, estar presentes. A Dama e os seus filhotes declinaram o convite porque teriam de trazer com eles o Vagabundo e a vida está cara. Mas enviaram um telegrama de apoio e uma verba para ajudar a custear as despesas. O Tom não vem pois anda preocupado com o Jerry. A Catwoman prometeu comparecer se conseguir libertar-se a tempo do compromisso assomido perante o Batman, que é o de resolverem a crise, a ver se não acontece outro crash como o dos anos vinte do século passado. O Zorba anda ocupadíssimo a ensinar uma gaivota a voar, mas se tiver tempo de ir a casa mudar de roupa, também aparece. A Gata em telhado de zinco quente prometeu vir, mas como é um pouco volúvel, e teria que pedir autorização para o Além ao Tenessee Williams, a presença não é certa. Mas certa é a presença de Gato Esteves, que com a sua música promete animar a reunião. O Lambão presidente do conselho fiscal, a Faísca e o Zimbro, sócios do clube, andam por fora a fazer-se à vida, mas vão estar presentes. Oxalá a reunião corra a contento. "Até logo" atirou o Nico. Os outros também miaram. E como jé era de noite, e de noite todos os gatos são pardos, portanto não correm o risco de ser denunciados individualmente, desapareceram pelos telhados em direcção ao Tinoco.



O que alguns escreveram acerca de gatos:

«Gatos falam com os rabos»

Cleveland Amory



«Os gatos podem ser engraçados, mas têm os modos mais estranhos de mostrar a sua alegria. O nosso sempre urinou nos nossos sapatos»

W. H. Auden



«É fácil entender porque é que os gatos despertam antipatia nas pessoas. Um gato mostra-se sempre bonito, sugestionando ideias de luxo, limpeza e prazeres voluptuosos»

Charles Baudelaire



«O gato é acima de tudo um dramaturgo»

Margaret Bensen



«Tenho sempre um calafrio quando vejo um gato que vê o que eu não posso ver»

Eleanor Farjeon



«Eu dei uma ordem ao gato e o gato deu-a ao seu rabo»

Provérbio chinês



«Se um homem pudesse ser cruzado com um gato melhoraria o homem mas deteoriaria o gato»

Mark Twain



«Gato amarelo ou gato preto, se apanhar ratos, é um bom gato»

Deng Xiaoping



«Um gato de luvas não captura nenhum rato»

Benjamin Franklin



(*) O Mago, o Lambão, a Faísca, o Zimbro, o clube Tinoco e a D. Maria da Glória Sância, são personagens do conto Mago, que faz parte do excelente livro os Bichos de Miguel Torga.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Ó senhor prior!!

Depois de ter escrito o hoje apetece-me... que está aí em baixo, veio-me à lembrança a história (pois, é mesmo história, e não a palermice do brasileirismo estória que muita gente já adopta) de um outro apetecia-me que aconteceu já lá vão 50 anos e de que eu fui o principal protagonista. E se a trago aqui é porque ainda me falam dela quando vou à minha aldeia. Eu já vivia na cidade grande, onde estudava, mas aproveitava as férias e todos os momentos disponíveis para ir até junto da família e dos amigos. Era Natal. Eu, e alguns dos meus amigos, jovens irrequietos e algo irreverentes, combinámos ir na noite de Natal à tradicional missa do galo que se rezava na igreja paroquial, na sede da freguesia. O padre titular da paróquia nessa altura, é o mesmo que ainda hoje se mantém à frente da mesma. Na sua juventude sofreu um acidente de viação que lhe deixou uma marca irreversível e inconfundível. Sofre frequentemente de lapsos, no teatro chamados brancas, cortes de memória propiciadores de inúmeras situações, algumas embaraçosas, mas a maioria provocadoras de riso farto. À hora aprazada lá nos deslocámos para a igreja, onde chegámos em cima da hora da missa.Igreja practicamente cheia. Por isso ficámos ao fundo. A cerimónia foi decorrendo até chegar a homília. O senhor prior que andava aborrecido com os seus paroquianos, não sei porque razão, resolveu ajustar contas com eles naquela altura. E então vá de desfiar o rosário de queixas. O tom das queixas já ia num volume razoável quando o padre resolveu ditar a sentença e começou por vociferar um eu apetecia-me... início da reprimenda, mas nessa altura, zás, a memória pregou-lhe a partida, o fusível fundiu, e ele repetia eu apetecia-me, eu apetecia-me, eu apetecia-me. Vendo que o padre nunca mais parava foi a minha vez de entrar em cena. Protegido pela barreira de pessoas à minha frente, disse eu em voz audível em toda a igreja: - Um prato de rabanadas senhor prior. Aquela gente ali à minha volta, e porque estava na igreja, teve alguma dificuldade em conter o riso. Mas aguentou-se. Bem, não houve escândalo, porque a barreira não deixou que a finesse, que nessa altura ocupava os lugares da frente, sinal de distinção, nem o senhor prior, conseguissem saber que fora eu o irreverente malcriado. Alguns sabê-lo-ão agora, lá na aldeia, porque ainda hoje se fala nisso. Como nas nossas (raras) conversas o senhor prior nunca me falou no acontecimento, acredito que ainda não saiba. Aqui fica a história que não é estória.

domingo, 5 de outubro de 2008

Hoje apetece-me...

Hoje, apetece-me que nada me apeteça. Hoje apetece-me que não me apeteça ir ao quiosque buscar o jonal, ir à padaria; hoje apetece-me que não me apeteça ler o jornal com notícias que já lemos ontem, as mesmas que vamos ler amanhã e depois, e depois; que não me apeteça confeccionar (ainda não aderi ao acordo) o almoço, tarefa que me calhou em sorte; que não me apeteça lavar a louça, outra tarefa que procuro desempenhar com esmero e dedicação; que não me apeteça ver no PC as mensagens que alguns amigos, e não só, me enviam, com destaque para aquelas - que graças a Deus abomino - normalmente oriundas do Brasil, e nos dizem que Deus existe, que é magnânimo, mas nos castiga (valha-nos Deus!), se não reencaminharmos a mensagem, pelo menos, para dez amigos. Hoje apetece-me que não me apeteça, que não me apeteça, que não me apeteça... Hoje fui tomado pela nostalgia, e apetece-me ficar sentado no sofá, a conversar com o meu gato, deitado no meu colo fingindo-se alheio e deliquescente, fiel companheiro de momentos de silêncio. Mas o Nico (é o meu gato) não aparece. E eu acordo do sonho. Caio no real. E lá tenho que ir ao quiosque, à padaria, lá tenho que ler o jornal, fazer o almoço, etc., etc., deixar passar o tempo... e só agora o Nico aparece. E, pasme-se a sua desfaçatez, pede-me, sim, porque ele também fala comigo, poemas com gatos. E não me deixa enquanto não lhe faço a vontade. Para o Nico aqui ficam dois poemas de gatos

Poema do gato

Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento rem sua paga,
e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo a acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as máxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

António Gedeão

História de gatos

Eu tinha um gato malhado
Que era muito malcriado
Se lhe dizia «bom dia»
Ele nem me respondia.
Se o mandava caçar,
Deitava-se a ressonar.
Se o mandava à escola
Ele ia jogar à bola.
Se o mandava pescar,
Até fugia do mar.
Aquele gato malhado
Não me fazia um recado,
Era só vê-lo miar
E dormir ou ressonar.

Deitei-o pela janela.

Entrou-me um gato por ela
Mais uma gata amarela
E os doze filhos dela.
Sentaram-se à minha mesa,
Comeram-me a sobremesa,
Dormiram no meu colchão,
Rasgaram o meu roupão
E dentro dos meus sapatos
Fizeram xixi os gatos.

Para ficar sossegado
Fui viver para o telhado.

LUISA Ducla Soares

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

ATÉ SEMPRE

Acabo de saber do passamento, há poucas horas, do meu amigo FERNANDO PEIXOTO. Sabia que o seu estado de saúde era preocupante, porque há dias, estando ele hospitalizado, contactei-o, tendo-me ele dado conta de exames que estava a realizar, uma vez que os médicos não sabiam exactamente o que lhe minava a saúde. Sabê-lo-iam, ele não. Mas, pelo menos para mim, não era expectável que nos deixasse tão cedo. O Fernando Peixoto era um homem da cultura, com quem se gostava de estar e de conversar. Além de dedicar parte do seu tempo à investigação, era professor de Teatro na ESAP e na Escola Superior de Educação, onde procurava incutir nos seus alunos o amor e a conduta responsável na actividade que escolheram. Por vezes controverso, era um convicto lutador pelas ideias que defendia, mesmo no blog Todo o Mundo é um palco, de que era responsável. O Fernando era também um excelente poeta. Muitas vezes me servi da sua poesia nos meus espectáculos. Sei que a cidade fica mais pobre ao vê-lo partir. Sei que os seus amigos lamentam ficar privados do seu convívio, mas sei também que a sua lembrança perdurará, e que nas nossas conversas de amigos o Fernando estará muitas vezes presente. Antes da despedida, em geito de homenagem, fica um bonito poema de amor, que ele sabia traduzir tão bem.

NÃO, MEU AMOR

"Não, meu amor...Nem todo o corpo é carne" -David Mourão-Ferreira

Não, meu amor, também és fogo

na forma como incendeias os sentidos.

Não, meu amor, também és raiva

onde espojo meu corpo em suor.

Não, meu amor, também és água

a dessedentar minha língua

seca de silêncio e de vómito.

Não, meu amor. Não és apenas carne,

nem apenas caule, nem apenas fruto,

mas sobretudo a seiva

de que se alimenta a minha ânsia de fuga.

Não, meu amor, também és mulher,

a parte que não existe em mim, homem!

"Não meu amor...Nem todo o corpo é carne".

Às vezes é uma viagem

ao interior uterino da criação

ao Imo da Vida

Fernando Peixoto

Com a minha saudade, ATÉ SEMPRE, FERNANDO

NOTA: Os versos do poema não são tão espaçados. Como ainda sou um "nabo" recente nestas andanças de blogs, há problemas que não sei (ainda) resolver. Lá virá o tempo.