CÃO I
Todas as notícias o davam como tendo morrido afogado, mas o rafeiro valente sobreviveu ao impacto da onda e antes que se fizesse tarde, lá vai ele até casa, onde chegou primeiro que o dono imprevidente. Só no dia seguinte vieram as novas de que o canídeo se tinha salvo e já estava pronto para outro passeio, esperando que a inconsciência do dono o não levasse a passear outra vez para junto do mar agitado. Sim, falo daquele rafeiro que só foi notícia porque o dono, num dia de tempestade, o levou até a beira mar e foi (o dono) arrastado por uma onda mais alterosa, tendo sido salvo por três jovens que não pensaram duas vezes no risco que corriam. Salvou-se o dono e salvou-se o cão e tudo acabou em bem.
CÃO II
Segundo rezam as estatísticas, Portugal é o país que tem mais recordes no Guinness. É também o país onde há mais telemóveis em uso. Não sei se isso nos traz algumas vantagens. Mas que sabemos aproveitar as ocasiões, sabemos. Bastou que o Presidente dos EE.UU fizesse constar que as filhas gostariam de ter um cão, talvez um cão-de-água português, e logo alguém ofereceu um exemplar. Só que o cachorro ainda não existia. Então, há que pôr a fábrica a funcionar. Mas a pretensa mãe não esteve pelos ajustes. Não sei como ficou a história, mas acho que seria boa ideia aproveitar a onda e começar a pensar-se na produção em série. Ganhava a raça (dos canídeos) e talvez ganhasse o turismo.
E aqui está o pretexto para dar a conhecer alguns poemas com cães dentro:
CÃO COMO NÓS
Como nós eras altivo
fiel mas como nós
desobediente.
Gostavas de estar connosco a sós
mas não cativo
e sempre presente-ausente
como nós.
Cão que não querias ser cão
e não lambias
a mão
e não respondias à voz.
Cão
cão como nós.
Manuel Alegre, in Cão como nós, a história do seu cão Kurika
NOCTURNO
Quatro da madrugada
Vivos,
sob o arco do céu,
eu
e um cão tão magro como eu.
Sem prévia combinação, sem nada,
tivemos este encontro nesta rua
a esta hora marcada
pelo aceno da lua.
E aqui vamos agora,
num amor vagabundo
de quem não se conhece e se namora,
a encher os dois sozinhos este mundo.
Miguel Torga, in Diário I, 1941
HISTÓRIA DE CÃO
eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha u8m pressentimento
tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros
entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada
depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou
ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia
estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar
e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo
o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória
dos lados não ficou nada
Mário Cesariny, in burlescas teóricas e sentimentais, 1972
BOM DIA , CÃO
Avisto na rua um cão
Digo-lhe: como vais, cão?
Pensa que me responde?
Não? Pois bem, mas ele responde-me
E isso não é da sua conta
Agora quando se vêem pessoas
Que passam sem sequer reparar nos cães
Sentimos vergonha pelos seus pais
E pelos pais dos seus pais
Porque é uma tão má educação
É coisa que requer pelo menos... e não estou a ser generoso
Três gerações, com uma sífilis hereditária
Mas, para não vexar ninguém, devo acrescentar
Que um número considerável de cães não falam com muita
frequência.
Boris Vian, in Cantilenas em Geleia
A VIDA É UMA FADA
há quem tenha
uma cadela
eu não tenho
uma gata.
a cadela
leva-me lá fora
a gata
anda lá fora.
a cadela
anda-se com ela.
por isso prefiro
não ter uma gata
a ter uma cadela.
embora na desgraça
esta gata é de raça.
se eu pudesse tinha-a
mas não pára em casa.
e se a tivesse passava
a vida como quem tem
uma cadela cinderela:
a gata, que é dela?
não era bom para mim
e era mau para ela.
antes da meia noite
já está com a cadela.
chamam-lhe borralheira
porque nunca mantém
em segredo a fada.
os cavalos são mesmo ratos
a varinha não é de marca
e a carruagem é uma abóbora.
apesar de tudo é uma gata
fala francês com a cadela
e não toca piano
mas escreve à máquina.
ora porque me inquieta
a gata que não é minha?
é que não quero saber da cadela da vizinha!
a borralheira, essa
comunista na miséria
comodista na fartura
é muito meiga e neutra.
à noite pousa a pata
no meu ombro e ladra
o estupor da gata.
Joaquim Castro Caldas, in Convém Avisar os Ingleses
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