Se fosse vivo, José Afonso faria hoje 80 anos. Por certo continuaria a cantar, mas talvez já não com a pujança de outrora. Talvez também já não com a mesma perseverança e a mesma convicção. Talvez desiludido com o rumo que tomou a liberdade que ele sempre buscou. Talvez, talvez… Nunca o saberemos. Mas poderemos com toda a certeza afirmar, que José Afonso foi um dos cantores de intervenção (se não o único) que mais marcaram a segunda metade do séc. XX. Ele, que viveu uma quase guerra com o fascismo, por ser um homem de pensamento livre, e que pouco sabia de composição, dois ou três tons, escreveu das mais fortes e interventivas canções de protesto que incomodaram o regime, e ajudaram a derrubá-lo. Nasceu em Aveiro (de onde saiu com 2 anos), cidade que quase o renegou, e que só há poucos anos, depois de muita politiquice (lá tinha a porca da política,- ou os políticos porcos -, de meter a foice em seara alheia), atribuiu o seu nome a uma escola. Dá que pensar de uma cidade onde se realizaram o Congresso Republicano de 1957 e três Congressos da Oposição Democrática, o último dos quais em Abril de 1973, e que também resistiu a atribuir a uma outra escola o nome de um aveirense ilustre, Mário Sacramento, um dos maiores vultos do pensamento português. Só os que pensam pequeno agem assim. Felizmente José Afonso pensava grande e por isso vai ficar na história. Vou deixar aqui alguns dos poemas que o Zeca escreveu e nunca musicou. Oxalá, carantonhas, vos sirvam.
OLHAI O NARDO E A CICUTA DOMADORES
Olhai o nardo e a cicuta
Domadores
Em todos os trapos e bandeiras
Se edificam sonhos absurdos
E Impérios
Se os meus ossos te consentirem
Se os meus ombros se vergarem
Eu te darei minha anuência
lúgubre
Como um silêncio sem fronteiras
Homens que dobrariam cavalos
se não dobrassem homens
Que edificariam países e rios
Mas nem vontades mataram
A morte espera-vos
Na justiça dos tempos.
“VENÃNCIO ERA COELHO”
Venâncio era coelho
Numa outra geração
Transmigrava de noite
De dia sucumbia
Quatro coisas Venâncio
Adorava fazer
Ver, comer, rogar pragas
Cortar as patas às moscas
Viaja sempre
Com apelidos falsos
Não declara
A bagagem que leva
Diz-se ministro
Papa
Boletineiro
Tem um metro e setenta
Não se importa
Que lhe mijem em cima
Atenção é vampiro
ISTO É SONO
Isto é sono
Tenho sono
Tenho saudades do vento
do poço
do catavento
da estrada de Santiago
Tenho montanhas de trapos
que são guisos
que são sapos
Tenho de tudo cautela
da minha infância calada
do velho
da nuvem branca
da janela
do romeiro
do tinteiro
da verruma.
Tenho saudades da espuma
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