Há já uns bons anos, integrei um grupo de teatro de amadores, numa vila, hoje cidade, fronteira com a cidade onde vivo. O grupo era heterogéneo em termo de profissões e culturalmente (ainda que saibamos que cultura é também o saber de experiência feito) muito diversificado também. Havia até alguns elementos com uma dose elevada de (como agora se diz) iliteracia. Entre eles o A, indivíduo que roçava a boçalidade, que era um convencido e tinha um defeito de linguagem marcante. Trocava o b pelo v. Em dada altura preparávamos uma peça do brasileiro Dias Gomes, a Invasão, cujo tema era precisamente a invasão de um prédio em construção, por gente das favelas. O A fazia o papel de um polícia. Um dia, no sentido de convencer aquela gente a abandonar o prédio, o chefe da polícia acompanhado pelo A, vai falar com os ocupantes. Depois da intervenção do chefe, o A dava a sua deixa, uma única frase, mais ou menos isto (cito de memória): “Saiam todos, senão vão para o albergue”. Ora como o nosso A trocava os bês pelos vês, o albergue saiu alvergue. O encenador ouviu, parou o ensaio, e corrigiu. Continuou o ensaio. Voltou a sair alvergue. Mais uma ou duas vezes. O encenador E, constatou a persistência no erro, mandou parar, pensou, e disse: “ A, em vez de albergue, vais dizer asilo”. “Está bem senhor E”. E então saiu esta coisa linda: “ Saiam todos, senão vão para o asilio” Ora toma que já almoçaste!
TEATRO
Na sala vazia sentaram-se os quatro.
E os quatro ficaram olhando, no fundo,
a mancha de luz do pequeno teatro.
- O dono do teatro – um vagabundo
que trouxera o teatro do outro lado do mundo –
por trás das cortinas puxava os cordéis…
Puxava os cordéis aos fantoches, fiéis
aos seus dedos infiéis de vagabundo.
……………………………………………………………….
Dos quatro meninos, um deles voltou,
e, tanto viu, que decorou
as falinhas mansas e a maneira
TEATRO
Na sala vazia sentaram-se os quatro.
E os quatro ficaram olhando, no fundo,
a mancha de luz do pequeno teatro.
- O dono do teatro – um vagabundo
que trouxera o teatro do outro lado do mundo –
por trás das cortinas puxava os cordéis…
Puxava os cordéis aos fantoches, fiéis
aos seus dedos infiéis de vagabundo.
……………………………………………………………….
Dos quatro meninos, um deles voltou,
e, tanto viu, que decorou
as falinhas mansas e a maneira
invertebrada dos fantoches de feira.
De dois dos meninos ninguém mais falou,
(e o outro é Poeta e ninguém lhe perdoa…)
mas do menino fantoche como é bom falar…
- porque o menino fantoche é hoje a pessoa
mais importante do lugar.
Sidónio Muralha, in Passagem de Nível
Novo Cancioneiro, Editorial Caminho, 1989
TOMA TOMA TOMA
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.
O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada história
da nossa própria vida.
Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral da classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.
Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.
Alexandre O’Neill, Poesias Completas (1951/1986),
Imprensa Nacional – Casa da Moeda
2 comentários:
Na minha terra chamavam-se "Robertos", esses bonecos falantes que davam cacetada uns aos outros e falavam com voz de "cana rachada"...e eram, juntamente com o cinema ao ar livre em noites de verão, a alegria de tantos miúdos (e graúdos).
E que ternura me trazem estas lembranças!
Beijos
Maria Mamede
Na minha terra e "naquele tempo", também se chamavam assim.E esses tinham coluna vertebral, por isso eram tão tesos.E hoje já não há! Os "robertos" de hoje, e há tantos por aí, não têm coluna vertebral, são parecidos com o menino do poema do Sidónio Muralha
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