Lá em casa, na aldeia, houve há muitos anos um burro que, quanto me recordo, não tinha nome, ou se o tinha era Preto. O Preto era um animal dócil, e afável, benquisto e acarinhado por todos lá em casa. Acabou por morrer não de velhice, mas de doença. Uma infecção vitimou-o, deixando em todos nós um sentimento de tristeza.
Lembrei-me do Preto quando agora reli "Platero e eu" do escritor e poeta Juan Ramón Jimenez. É um dos meus livros preferidos apesar de só ter tido a oportunidade de o ler já a juventude tinha ficado para trás. Confesso que a sua singeleza, a sua ternura, o bucolismo e o ambiente idílico retratados, me encantaram. Direi mesmo que me emocionei ao lê-lo, particularmente quando chegou o momento de encarar a morte de Platero. Talvez por já terem passado alguns anos e porque a vida tenha calcinado algumas emoções, a sua releitura já não me provocou a mesma reacção. No entanto, continua a ser um dos meus livros preferidos. Fica aqui um pouco do "Platero e eu".
"Platero, é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro.
Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia levemente com o focinho, mal as roçando, as florinhas róseas, azuis-celestes e amarelas...
Chamo-o docemente: «Platero», e ele vem até mim com um trote curto e alegre que parece rir em não sei que guizalhar ideal...
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ASNOGRAFIA
Leio num dicionário: «Asnografia: s. f.: diz-se, ironicamente, da descrição do asno».
Pobre asno! Tão bondoso, tão nobre, tão inteligente como nós! Ironicamente... Porquê? Nem uma descrição séria mereces tu, cuja descrição exacta seria um conto de Primavera? Se ao homem que é bom deveriam chamar asno! Se ao asno que é mau deveriam chamar homem! Ironicamente... De ti, tão intelectual, amigo dos velhos e das crianças, dos regatos e das borboletas, do sol e dos cães, das flores e da lua, paciente e reflexivo, melancólico e amável, Marco Aurélio dos prados...
Platero, sem dúvida compreende, olha-me fixamente com os seus grandes olhos brilhantes, de uma serena firmeza, onde o sol brilha, diminuto e refulgente, num breve e convexo firmamento negro. Ai! Se a sua peluda cabeçorra idílica soubesse que eu lhe faço justiça, que eu sou melhor que esses homens que escrevem Dicionários, quase tão bom como ele!
E escrevi à margem do livro: «Asnografia: s. f.: deve dizer-se, com ironia, claro está!, da descrição do homem imbecil que escreve dicionários».
Confesso que se tivesse possibilidade, gostava de ter um burro, como o Platero ou como o saudoso Preto.
Se ainda não leram "Platero e eu", espero que este trecho do livro vos incentive.
Juan Ramón Jimenez nasceu em Moguer, Andaluzia, em 23 de Dezembro de 1881, filho de uma família abastada. Fez os estudos secundários no colégio jesuíta de Porto se Santa Maria. Estudou direito em Sevilha, por vontade do pai, e pintura, por vontade própria.Começou a ler os poetas espanhóis mais famosos da época. Foi para Madrid em Abril de 1900. A morte repentina do pai causou-lhe um traumatismo para toda a vida: o pavor da morte súbita e o consequente desejo de ter sempre um médico perto de si. Mudou-se para Porto Rico em resultado de sucessivas viagens e hospitalizações por motivo das frequentes depressões nervosas. Juan Ramón Jimenez ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1956 e morreu a 29 de Maio de 1958.
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