A história que hoje vou trazer aqui, não fui buscá-la à arca do velho, embora a dita lá repouse há muito. Isto, porque a minha mãe, que foi quem me a contou, ainda a conta quando a ocasião se proporciona. É uma história que podemos incluir no capítulo das festas e romarias e que se passa entre os anos trinta e quarenta do século passado.
Conta a minha mãe que nessa altura não havendo ainda orquestras para animar bailaricos, estes aconteciam normalmente no largo da aldeia ou em qualquer terreiro onde a juventude se juntasse, e em que houvesse um instrumento musical, e alguém que o tocasse. Acontecia aparecer sempre por lá um simpático senhor, o Ti Cipriano, com o seu acordeão (nesse tempo seria talvez uma concertina) mas, infelizmente para a mocidade dançante, com um repertório escasso, que ia dando para animar a festa. Mas passado algum tempo da festança ter começado, já todos estavam cansados de dançar as mesmas modas, que sei iam repetindo de encontro para encontro. Então, as moças, que normalmente nestas coisas de bailaricos eram as mais interessadas e as mais atrevidotas (parece que ainda hoje é assim), chegavam-se ao Ti Cipriano e pediam:- "Ó Ti Cipriano, toque lá agora um tango". E o Ti Cipriano, consciente deas suas limitações, respondia:- "Ó meninas, ó meninas, eu toco a que sei, voces dançam a que querem". E o bailarico lá continuava sem zangas nem amuos, porque o que as moças queriam era rodopiar amparadas pelos braços dos moços.
Carantonha- s.f.-contorsão do rosto, esgar, máscara, cara feia, carranca, caraça. * Em criança, na região de onde sou natural, e onde então vivia, quando se brincava ao carnaval, o artefacto que nos ocultava o rosto, era a carantonha porque por norma era coisa feia. O tempo passa, a evolução acontece, e hoje, pelo menos quando jogamos ao carnaval, usamos uma máscara. Ou será que não a usamos todos os dias?
terça-feira, 23 de junho de 2009
segunda-feira, 22 de junho de 2009
Festa na aldeia
Como estamos na época dos santos populares, com festas, romarias, noitadas por todo o país, e amanhã é a véspera de S. João, a grande festa estival aqui na cidade do Porto, lembrei-me que na arca do velho há qualquer coisa referente ao tema das romarias, e fui repescá-la. Foi publicada a primeira vez no jornal de um clube desportivo em Julho de 1977. Aqui fica a
FESTA NA ALDEIA
No passado domingo estive na minha aldeia. Lá havia festa. Lá, esteve a banda. Que tocava as mesmas marchas que eu ouvia na meninice. Aí a memória recuou e eu fui outra vez menino. Menino de calção, atrás da banda, quando esta percorria as ruas da minha aldeia, tocando as suas estridentes marchas.
No passado domingo, estive na minha aldeia! Lá esteve também a banda, a abrilhantar a festa que havia. E era da minha aldeia. E como me comovi ao escutar todos aqueles metais que fabricam música e me fizeram lembrar a minha meninice, de horizontes quase limitados à minha aldeia. Em que um dos raros momentos de libertação e de sonho era a festa. E a banda. No passado domingo houve a banda. Na minha aldeia. Porque era festa. E houve marchas tocadas pela banda. E ao ouvi-las, recuei um pouco e vi-me já adolescente, na festa da minha aldeia, de nariz especado, junto ao coreto, atraído pelo som irresitível daquilo que nesse tempo não se chamava orquestra e muito menos conjunto.Era só, e por influência, o Jazz-band.
No passado domingo estive na minha aldeia, onde havia festa. E ao ouvir a banda, recuei no tempo, o espaço suficiente para recordar o momento, em que já na cidade, tomei conhecimento da poesia de Manuel da Fonseca e com o seu "Mataram a tuna", poema que mesmo que localizado no tempo, nos dá o colorido pobre da maior parte das nossas aldeias. Como nelas se vivia. Se vive. Que nos dá um tempo ainda não muito distante, que é preciso fazer esquecer. Poema que no seu final é um chamamento aos indecisos e à esperança. No passado domingo
estive na minha aldeia. E lá, na festa, ao ouvir a banda, recordei o "Mataram a tuna"
MATARAM A TUNA
Nos domingos antigos de bibe e pião
Saía a tuna do Zé Jacinto
Tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim
Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.
Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor...l
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar...)
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!
Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha
parecia até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.
Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!
Meus companheiros antigos de bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!
Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita
despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do é Jacinto
tocando a marcha Almadanim!
FESTA NA ALDEIA
No passado domingo estive na minha aldeia. Lá havia festa. Lá, esteve a banda. Que tocava as mesmas marchas que eu ouvia na meninice. Aí a memória recuou e eu fui outra vez menino. Menino de calção, atrás da banda, quando esta percorria as ruas da minha aldeia, tocando as suas estridentes marchas.
No passado domingo, estive na minha aldeia! Lá esteve também a banda, a abrilhantar a festa que havia. E era da minha aldeia. E como me comovi ao escutar todos aqueles metais que fabricam música e me fizeram lembrar a minha meninice, de horizontes quase limitados à minha aldeia. Em que um dos raros momentos de libertação e de sonho era a festa. E a banda. No passado domingo houve a banda. Na minha aldeia. Porque era festa. E houve marchas tocadas pela banda. E ao ouvi-las, recuei um pouco e vi-me já adolescente, na festa da minha aldeia, de nariz especado, junto ao coreto, atraído pelo som irresitível daquilo que nesse tempo não se chamava orquestra e muito menos conjunto.Era só, e por influência, o Jazz-band.
No passado domingo estive na minha aldeia, onde havia festa. E ao ouvir a banda, recuei no tempo, o espaço suficiente para recordar o momento, em que já na cidade, tomei conhecimento da poesia de Manuel da Fonseca e com o seu "Mataram a tuna", poema que mesmo que localizado no tempo, nos dá o colorido pobre da maior parte das nossas aldeias. Como nelas se vivia. Se vive. Que nos dá um tempo ainda não muito distante, que é preciso fazer esquecer. Poema que no seu final é um chamamento aos indecisos e à esperança. No passado domingo
estive na minha aldeia. E lá, na festa, ao ouvir a banda, recordei o "Mataram a tuna"
MATARAM A TUNA
Nos domingos antigos de bibe e pião
Saía a tuna do Zé Jacinto
Tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim
Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.
Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor...l
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar...)
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!
Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha
parecia até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.
Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!
Meus companheiros antigos de bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!
Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita
despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do é Jacinto
tocando a marcha Almadanim!
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sexta-feira, 5 de junho de 2009
Exames
Nas escolas estamos em cima da época de exames. Pensando nisso, fui à arca do velho ver se por lá havia algo sobre o tema. E encontrei. Um pequeno contarelo (passe a redundância). Então aqui vai, em jeito de era uma vez…
“… o jovem da nossa história vivia num meio rural, no seio de uma família modesta, mas honrada. Frequentou a escola da aldeia e depois, o colégio, na vila. Que se chamava colégio Infante D. Henrique. Apesar de na aldeia passar um ribeiro, pomposamente crismado de Rio Lindo, e de a nascente da vila passar o rio Cértima, não sei o que teria andado o Infante a fazer por aqueles lados. Adiante. Nos intervalos dos estudos ajudava, trabalhando para a casa. Apanhava erva para os animais, ia à lenha, para alimentar o fogo da lareira e ajudava o seu avô nas artes da lavoura. Quando completou o 5º ano (o do antigamente), o seu pai, que vivia e trabalhava na cidade grande, chamou-o para passar férias com ele. E disse-lhe: “agora ficas cá, pois quero que vás frequentar no ICP (Instituto Comercial do Porto), um curso de Habilitação à Faculdade de Economia O nosso jovem, que gostava de Letras e detestava a matemática, quase ficou mudo. Mas obedeceu. Resultado: andou três anos para fazer matemática do 1º. ano e frequentou mais dois do 2º., que não completou. O curioso, é que o tal curso não tinha a cadeira de Filosofia, necessária para o completar. Tinha que ser feita por fora. Assim, o nosso jovem, já espigadote e mais ou menos conhecedor das coisas boas da cidade e também de alguns dos seus perigos, estudando pelo compêndio, sem explicador, propôs-se a exame. Na primeira vez, por meio valor, não foi à oral. Na 2ª.vez conseguiu. Passava-se isto por 1957 ou 58. Apresentou-se a exame e quando chegou a sua vez lá estava ele perante o júri. O nosso jovem, que sempre fora mais bem sucedido a escrever do que a enfrentar provas orais, estava algo receoso. E tinha razão, como se verá. Diga-se que naquela época as provas escritas eram compostas por oito questões, mas lá vinha o aviso “responda a quatro e só a quatro questões”. Ele respondia a tudo, pois estava convencido que sempre lucraria alguma coisa. A primeira pergunta, fácil, foi respondida. A segunda, a construção de um silogismo, foi respondida, até que… “e agora diga-me que regra aplicou “. Aqui, o nosso actor teve uma “branca” e disse ao professor que não se lembrava e propôs que o exame continuasse, que quando se lembrasse responderia, ou então que o professor interrompesse e perguntasse. Interrompeu logo ali, isto é, ficou calado a olhar fixamente o aluno, e este à espera. Como esta já fosse demasiado longa (parecera-lhe uma eternidade), desceu do estrado, pegou nos livros, de cima da carteira, e saiu. Quando ia a transpor a porta, “faz favor. Você é um aldrabão. A prova dizia para responder a quatro, e só a quatro questões, e você respondeu a todas”. Sem pensar nas implicações que a sua atitude poderia ter, pois nunca se sabia se num aluno, num professor ou num contínuo estava um "bufo" ou um”pide”, o nosso jovem respondeu: “Vá-se f…., vá p’ro c……”. E saiu de cena definitivamente. No dia seguinte, foi consultar a pauta dos resultados. Todos os que naquela sala se tinham apresentado a exame tinham passado, menos um. EU”.
Que vos aproveite este contarelo que não foi assim tão breve.
“… o jovem da nossa história vivia num meio rural, no seio de uma família modesta, mas honrada. Frequentou a escola da aldeia e depois, o colégio, na vila. Que se chamava colégio Infante D. Henrique. Apesar de na aldeia passar um ribeiro, pomposamente crismado de Rio Lindo, e de a nascente da vila passar o rio Cértima, não sei o que teria andado o Infante a fazer por aqueles lados. Adiante. Nos intervalos dos estudos ajudava, trabalhando para a casa. Apanhava erva para os animais, ia à lenha, para alimentar o fogo da lareira e ajudava o seu avô nas artes da lavoura. Quando completou o 5º ano (o do antigamente), o seu pai, que vivia e trabalhava na cidade grande, chamou-o para passar férias com ele. E disse-lhe: “agora ficas cá, pois quero que vás frequentar no ICP (Instituto Comercial do Porto), um curso de Habilitação à Faculdade de Economia O nosso jovem, que gostava de Letras e detestava a matemática, quase ficou mudo. Mas obedeceu. Resultado: andou três anos para fazer matemática do 1º. ano e frequentou mais dois do 2º., que não completou. O curioso, é que o tal curso não tinha a cadeira de Filosofia, necessária para o completar. Tinha que ser feita por fora. Assim, o nosso jovem, já espigadote e mais ou menos conhecedor das coisas boas da cidade e também de alguns dos seus perigos, estudando pelo compêndio, sem explicador, propôs-se a exame. Na primeira vez, por meio valor, não foi à oral. Na 2ª.vez conseguiu. Passava-se isto por 1957 ou 58. Apresentou-se a exame e quando chegou a sua vez lá estava ele perante o júri. O nosso jovem, que sempre fora mais bem sucedido a escrever do que a enfrentar provas orais, estava algo receoso. E tinha razão, como se verá. Diga-se que naquela época as provas escritas eram compostas por oito questões, mas lá vinha o aviso “responda a quatro e só a quatro questões”. Ele respondia a tudo, pois estava convencido que sempre lucraria alguma coisa. A primeira pergunta, fácil, foi respondida. A segunda, a construção de um silogismo, foi respondida, até que… “e agora diga-me que regra aplicou “. Aqui, o nosso actor teve uma “branca” e disse ao professor que não se lembrava e propôs que o exame continuasse, que quando se lembrasse responderia, ou então que o professor interrompesse e perguntasse. Interrompeu logo ali, isto é, ficou calado a olhar fixamente o aluno, e este à espera. Como esta já fosse demasiado longa (parecera-lhe uma eternidade), desceu do estrado, pegou nos livros, de cima da carteira, e saiu. Quando ia a transpor a porta, “faz favor. Você é um aldrabão. A prova dizia para responder a quatro, e só a quatro questões, e você respondeu a todas”. Sem pensar nas implicações que a sua atitude poderia ter, pois nunca se sabia se num aluno, num professor ou num contínuo estava um "bufo" ou um”pide”, o nosso jovem respondeu: “Vá-se f…., vá p’ro c……”. E saiu de cena definitivamente. No dia seguinte, foi consultar a pauta dos resultados. Todos os que naquela sala se tinham apresentado a exame tinham passado, menos um. EU”.
Que vos aproveite este contarelo que não foi assim tão breve.
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Nico, e outros gatos
O Nico, o meu gato, (se não sabem quem é, deviam saber) está aqui ao pé de mim, deitado no espaço que sobra da secretária, atento ao que escrevo. Aliás, é frequente a sua estadia aqui. E como não anda com muita vontade de continuar a aprender a escrever, -diz-me que é só quando quer-, vai atirando folhas de papel e outras coisa para o chão. Eu vou-o desculpando, porque apesar das mordidelas, ele diz que "gosta de mim". E sim, dá-me frequentes provas do seu afecto o sacaninha. E eu perdoo, pois agora que estamos de partida para um período de férias na praia, ele já me prometeu que no regresso, depois de ter conhecido mais uma gatas, vai retomar a aprendizagem. E eu, vá de prometer-lhe um poema de gatos. Aqui vai:
ELEGIAZINHA
Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.
Gatos jamais morrem de facto:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.
Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma
refinada de preguiça.
Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.
Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso
e dormirão lá, depois do ónus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.
Nelson Ascher
Nelson Ascher, (São Paulo, 1958) é poeta, jornalista e tradutor. Como poeta publicou Ponta da Língua, Sonho da Razão, Algo de Sol e Parte Alguma.
E agora não resisto a deixar ao Nico mais um poema sobre gatos. Mais uma vez de Eugénio de Andrade. Oxalá lhe agrade também, este.
ACERCA DE GATOS
Em Abril Chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, a partilhe
a leitura do Público ao domingo.
ELEGIAZINHA
Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.
Gatos jamais morrem de facto:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.
Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma
refinada de preguiça.
Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.
Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso
e dormirão lá, depois do ónus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.
Nelson Ascher
Nelson Ascher, (São Paulo, 1958) é poeta, jornalista e tradutor. Como poeta publicou Ponta da Língua, Sonho da Razão, Algo de Sol e Parte Alguma.
E agora não resisto a deixar ao Nico mais um poema sobre gatos. Mais uma vez de Eugénio de Andrade. Oxalá lhe agrade também, este.
ACERCA DE GATOS
Em Abril Chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, a partilhe
a leitura do Público ao domingo.
quarta-feira, 3 de junho de 2009
Compreensão e cívismo
Nestes últimos dias houve uma quantidade de facto a merecer notícias destacadas em tudo quanto é comunicação social. Como diria o outro, pleonasticamente falando, sucederam-se sucessivos sucessos. Alguns bem lamentáveis, outros nem tanto, ou assim assim. Não é desses que quero dar nota, mas sim daqueles que, apesar de relevantes, como se verá, merecem só uma pequena notícia perdida no interior dos jornais. Duas notas, que têm como origem uma entidade que deveria poupar-nos a tão tristes episódios, já que se diz defensora e pugnadora por valores morais, solidariedade, acompanhamento dos mais desfavorecidos, etc., etc., etc. Aí em baixo podereis, caros carantonhas, apreciar estes etc., e juntar-lhes outros, se quiserdes. Especialmente, insensibilidade. Sem outros comentários, os factos:
1º. - Numa freguesia minhota, L, mulher de 69 anos, na missa dominical, foi impedida de comungar, por se apresentar de touca na cabeça. A touca tinha uma explicação. A L tinha-lhe caído o cabelo pois estava a fazer quimioterapia por lhe haver sido diagnosticado cancro da mama. O padre (?) mandou-a "retirar e esperar pelo fim",para lhe explicar as condições em que deveria ir comungar, por L se ter "apresentado indignamente à comunhão". Nem sequer ouviu as explicações da senhora, que desgostosa, mas não desistindo da sua fé e devoção se afastou para outra paróquia.
2º. - Na passada sexta-feira o Parque da Cidade, no Porto, foi ocupado por milhares de jovens, num convívio da disciplina de Religião e Moral, organizado pela Diocese. Tudo bem, não fosse a falta de sentido cívico dos participantes e organizadores. No fim do convívio, segundo o JN, o Parque "transformou-se num gigantesco caixote de lixo". Desrespeito pelo meio ambiente e pelo uso de um local aprazível (sem estes vândalos) que é de todos. E conclui o JN "que talvez estes jovens, e quem os levou ao Parque, estejam precisados, mais do que de aulas de Religião e Moral, de aulas de Educação Cívica".
E eu concordo. Comentários para quê! A não ser, valha-lhes São Pancrácio.
E vou recorrer mais uma vez a Eugénio de Andrade:
A POESIA NÃO VAI
A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do verão.
1º. - Numa freguesia minhota, L, mulher de 69 anos, na missa dominical, foi impedida de comungar, por se apresentar de touca na cabeça. A touca tinha uma explicação. A L tinha-lhe caído o cabelo pois estava a fazer quimioterapia por lhe haver sido diagnosticado cancro da mama. O padre (?) mandou-a "retirar e esperar pelo fim",para lhe explicar as condições em que deveria ir comungar, por L se ter "apresentado indignamente à comunhão". Nem sequer ouviu as explicações da senhora, que desgostosa, mas não desistindo da sua fé e devoção se afastou para outra paróquia.
2º. - Na passada sexta-feira o Parque da Cidade, no Porto, foi ocupado por milhares de jovens, num convívio da disciplina de Religião e Moral, organizado pela Diocese. Tudo bem, não fosse a falta de sentido cívico dos participantes e organizadores. No fim do convívio, segundo o JN, o Parque "transformou-se num gigantesco caixote de lixo". Desrespeito pelo meio ambiente e pelo uso de um local aprazível (sem estes vândalos) que é de todos. E conclui o JN "que talvez estes jovens, e quem os levou ao Parque, estejam precisados, mais do que de aulas de Religião e Moral, de aulas de Educação Cívica".
E eu concordo. Comentários para quê! A não ser, valha-lhes São Pancrácio.
E vou recorrer mais uma vez a Eugénio de Andrade:
A POESIA NÃO VAI
A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do verão.
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Parque da Cidade
A tradição já não é...
A tradição já não é o que era. Já sei, já sei que é uma tirada banal, vulgar, recorrente, de quem não sabe como começar o que tem para dizer. Mas naquilo de que quero falar é perfeitamente aplicável. Portanto...
Do que vos quero falar é da Feira do Livro. É ou não, verdade, que sempre que a feira era inaugurada, e mesmo durante, chovia, por vezes copiosamente? Veja-se o calor que tem feito! Lá se foi a tradição... Mesmo com este calorzinho a prenunciar um verão quente quanto baste, agora que a feira voltou às origens, à Avenida dos Aliados, merece ser visitada, para mais com horários compatíveis para quem trabalha. Passem por lá carantonhas, façam um esforçozito e comprem ao menos um livro. Eu já fiz a minha obrigação. E se gostarem de poesia, que é um dos gostos do carantonha-mor, fiquem com este pequeno poema de Eugénio de Andrade para vos aguçar o apetite:
O SAL DA LÍNGUA
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
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segunda-feira, 1 de junho de 2009
Ausente/presente
Siiim eu seiii que tudo são re-coor-da-ções... desculpem lá, carantonhas, mas estava a lembrar-me da cantiga do toureiro Espadinha. Não, não desapareci! Só que, se por um lado não me apeteceu escrever, por outro, felizmente, andei muito ocupado. Senão veja-se. Tive que decorar poemas de Camilo Castelo Branco (e que má poesia ele escreveu) para dizer numa conferência sobre o mesmo, no Forum de Ermesinde; tive que preparar a leitura de alguns textos para a apresentação de um romance histórico, "O Último Bandeirante", da autoria de Pedro Pinto, pivô do telejornal da TVI, na Biblioteca de Paços de Ferreira;e por último tive que decorar e preparar um diálogo para um "casting" para televisão. Ah, e ainda tive que praticar a minha "boa acção semanal", como eu costumo dizer, a gravar textos para cegos, na Biblioteca de Gaia. Todas estas actividades me ocuparam tempo, me tiraram a disposição para a escrita, mas deixaram-me imensamente satisfeito. Aqui está a razão do meu desaparecimento temporário. Espero estar desculpado. Tenho dito.
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