Comemora-se hoje o Dia Mundial da Alimentação.Gostaria de vos dizer, caros carantonhas, que sou um bom garfo, posso dizer que tenho o prazer da mesa, mas que não sou guloso. Uma boa refeição, acompanhado de boa gente, seja família ou amigos, é algo que nos reconforta e nos lava a alma. Não venho aqui dar-vos conselhos, mas tão só desejar que sejam racionais e comedidos quando se sentam à mesa. Mas vou ousar recomendar-vos que hoje se empanturrem, não com comida mas com poesia, sem o receio de que tenham uma indigestão. Então vá, sentem-se à mesa e deliciem-se. Podem dar e baralhar, e como aqui a ordem dos factores (isto é, os pratos, melhor dizendo, os poemas) é arbitrária, podem até começar pela sobremesa e acabar no peixe.
Nota: quis deixar-vos aqui a nova roda dos alimentos para vos ajudar a escolher os alimentos, mas por causa de um qualquer erro que não me foi possível resolver ficam só os poemas.Como costumo dizer, fiquem bem e façam o favor de se portar mal.
POESIA À (OU NA) MESA
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Dá a surpresa de ser.
È alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ò fome, quando é que eu como?
Fernando Pessoa (Antologia Poética, da Editora Ulisseia)
DE TARDE
Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela
E que, sem ter histórias nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via:
e houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde (De O Livro de Cesário Verde, citado de cor)
Diospiros
Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua
e só depois
muito depois
se deixam morder
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Nem todos os frutos vermelhos
merecem o céu
de tua boca.
(Dois poemas de Jorge de Sousa Braga, do livro Balas de Pólen,
in Poesia à Mesa – Antologia, da quasi Edições)
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Soneto C/IVA
Pedi dois cafés sorrindo
que não era normal
trouxeram-me um duplo.
o néctar de pêra veio de pêssego.
a mágoa das pedras pode ser Vidago?
o bife saignant saiu trop cuit.
não tinha mais trocado
não me disseram bom dia.
não deixei gorjeta
puseram-me na rua.
fui para casa ler a Dobrada
à Moda do Porto do Pessoa
nem sem antes pedir o livro
de reclamações que não havia.
Joaquim Castro Caldas, do livro Convém Avisar os Ingleses
in Poesia à Mesa – Antologia, da quasi Edições
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FRUTOS
Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música dos meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.
Eugénio de Andrade, de Poesia, in
Poesia à Mesa- Antologia da quasi Edições
porco trágico I
conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.
a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.
o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.
Alberto Pimenta, de Obra Quase Incompleta,
in Poesia à Mesa- Antologia, da quasi Edições
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Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra;
um dia encontraram-se num caminho muito estreito,
e devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra
não ficou nada.
Esta história tradicional demonstra que se deva amar o próximo,
ou então ter muito cuidado com o que se come.
Ana Hatherly, do livro Tisanas, citado de cor
Carantonha- s.f.-contorsão do rosto, esgar, máscara, cara feia, carranca, caraça. * Em criança, na região de onde sou natural, e onde então vivia, quando se brincava ao carnaval, o artefacto que nos ocultava o rosto, era a carantonha porque por norma era coisa feia. O tempo passa, a evolução acontece, e hoje, pelo menos quando jogamos ao carnaval, usamos uma máscara. Ou será que não a usamos todos os dias?
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Dia Mundial da Alimentação
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