Nelson Ferraz, meu amigo, continua a porfiar na arte da escrita, que domina com mestria. Nas suas crónicas, por vezes pontuadas de ironia, sarcasmo, mas também de alguma poesia, dá-nos com rigor a sua visão certeira do mundo que o (nos) rodeia. A sua poesia luminosa, construída em metáforas, reconforta-nos e encanta. Quando escreve, seja crónica ou poesia, “as imagens, as letras, as dores, os risos, a fúria e a paixão, a água e o fogo, estavam ali”. E ainda mais “o texto brotava do coração, e lânguido e terno, derramava-se na poeira, limpa, das ametistas desenhadas e inventadas no papel”(*). É assim que o Nelson escreve, que sente a escrita.
O texto que se segue, do qual eu gosto particularmente, demonstra-o. Será uma prosa poética, ou um poema em prosa?. Melhor, é um prosema.
(*) O texto entre aspas e em itálico, faz parte de uma crónica, “Texto”, que consta do seu livro de crónicas À Esquerda de Deus.
COM O TEU OLHAR
responde-me com o teu olhar.
só com o teu olhar. onde quer que estejas.
responde-me com o teu abraço que me conforta este tempo
confuso de andar por aí
por mim a dentro
fugindo à chuva brava da noite escura.
procura para mim aqueles que gostam de Brel que não se esqueceram de Liszt.
procura para mim os tocadores de piano que dizem adeus enquanto envelhecem
aqueles que vão morrendo nos calendários com Chopin nos dedos
e que não choram e que não sabem chorar quando a alma parte definitivamente partida em pedaços de som e de êxtase.
encontra para mim quem ainda saiba andar descalço sobre o chão
descalço assim sem mais nem menos sem medo dos bichos das febres e do absurdo.
procura então quem se lembre…
será que alguém se lembra ainda da agonia e da barafunda de partir para uma guerrilha lá longe e de voltar
e da alegria de voltar e da alegria de quem nos vê voltar
e que depois desaparecem e que depois…
já são outros que não são nossos e que são quase estranhos a esperar-nos?
e são estranhos quase para sempre e que têm poucos beijos para nós
e nós estamos sós entre milhões de companhias que não são companheiros.
dois instantes depois partimos o coração que era branco e ganhamos uma sombra desconfiada entre o peito e a vida.
encontra para mim aquele anjo
o único anjo que existe
e que dormia todas as noites no telhado da minha casa.
aquele anjo que ainda sinto hoje todas as noites aos pés da minha cama com a voz calma de quem não sabe nunca abandonar-me ao frio de histórias outras.
conta-me uma história ou fala-me da vida. só mais uma vez mas para sempre se puderes.
procura para mim aquele eu que se escondia entre os jarros as rosas as sardinheiras e os trevos em vasos que se encostavam à torneira do pátio.
diz-me que está calor que os pássaros sabem as árvores e os regatos sabem as águas e que o vento que por aí ronda é apenas mais um bocado de saudade que não sabe para onde ir.
responde-me com o teu olhar:
ainda me conheces?
Com a devida vénia ao Nelson Ferraz e ao Jornal “MaiaHoje”,
onde foi publicado em 27-06-08
1 comentário:
Olá Amilcar, bom dia meu Amigo!
Agradeço-te, enternecida, este post com trabalho do Nelson Ferraz. Este Prosema está um ESPANTO, como tudo o que lhe conheço; desde há muitos anos, como sabes, que a minha Amizade pelo Nelson é grande, mas não iguala a minha admiração.
Sempre soube da sua enorme capacidade e inspiração, pois sempre escreveu extraordinariamente fácil, a propósito de tudo e de nada;
sempre foi (e continua sendo) minha convicção que "HÁ-DE FICAR", pelo talento e pela perseverança.
OBRIGADA a ti por aqui o recordares e/ou dares a conhecer a quem ainda o não conhece.
Beijos da
Maria Mamede
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