sábado, 5 de setembro de 2009

A minha, e a mola da vizinha

MOLA DE ROUPA 1 (velha, de madeira, já enferrujada)- Olá vizinha, é nova nesse estendal. É a sua primeira vez?

MOLA DE ROUPA 2 (nova, de plástico, colorida)- Pois é, vizinha, é a primeira vez. E para começar tenho a responsabilidade de segurar este pesado casacão de malha. É preciso ter azar!

MOLA DE ROUPA 1- Não se queixe.Olhe pra mim, velha, já só seguro de vez em quando umas peugas e umas cuecas. Não se lastime, é a vida, vizinha!






Pois, é a vida. Molas de madeira (pinho, geralmente), molas de plástico, brancas, transparentes, azuis, verdes, amarelas, vermelhas e de cores outras. Suportam os mais variados pesos, as mais variadas roupas, por vezes a má disposição de quem se serve delas. Caem ao chão, alguém as levanta. Vivem sempre penduradas. E como qualquer semelhança com a realidade não é pura ficção, até as molas se lamentam e também sonham. VE#$"#W"Q (isto foi o meu gato Nico que escreveu). Vejam como, neste poema de Jorge Gomes Miranda.



MOLA DE ROUPA

Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.
Um prédio com dez andares
e ele tinha logo que viver no último,
tendo como horizonte o mar
de terraços e antenas parabólicas.


Quando, chegado com a roupa
da máquina de lavar,
pega em mim,
de suas mãos eu deslizo para o chão.
Apressado, em vez de me apanhar
imediatamente, escolhe outra;
no final, atira-me para o cesto
de verga.

fNão é que seja particularmente ardilosa,
mas verdade seja dita, preferia ser
mola de rés-do-chão,
dessas que faça sol ou chuva
sempre prendem a roupa numa corda
estendida no pátio.
O destino quis-me feita de plástico,
com um coração inclinado à melancolia.
Tenho, no entanto, como divisa
antes quebrar que torcer.


Sonho com o dia em que nas mãos da criança
serei um comboio.

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