terça-feira, 15 de abril de 2014

DOIS ANOS

Hoje, porque a nossa passagem pelo tempo é inexorável, à distância de dois anos da tua partida, vivemos de recordar memórias. E lembro-me de como tu gostavas de flores. E como eu só tas trazia em ocasiões especiais, “puxavas-me as orelhas”,por não tas oferecer mais vezes. Eu sei que não era tanto a flor que contava, mas o gesto. Então, hoje, para te ter mais presente, comprei uma rosa, que por aqui ficará até que também ela se vá. Espero que gostes.
Deixo-te com um bonito poema de Eugénio de Andrade e um beijo terno de saudade.

Poema VIII

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
E dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
E o verde mais verde dos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
Um corpo aberto como os animais

domingo, 8 de dezembro de 2013

Uma das coisas que se costuma dizer, nesta altura do ano, é que o Natal é das crianças. Então aqui fica um poema de natal para crianças. É um poema de Luísa Ducla Soares

DIA DE NATAL

Hoje é dia de Natal
Mas o Menino Jesus
Nem sequer tem uma cama,
Dorme na palha onde o pus.

Recebi cinco brinquedos
Mais um casaco comprido.
Pobre Menino Jesus,
Faz anos e está despido.

Comi bacalhau e bolos,
Peru, pinhões e pudim.
Só ele não comeu nada
Do que me deram a mim.

Os reis de longe lhe trazem
Tesouro, incenso e mirra.
Se me dessem tais presentes,
Eu cá fazia uma birra.

Às escondidas de todos
Vou pegar-lhe pela mão
E sentá-lo no meu colo
Para ver televisão.
Gosto · 

A MORTE DO PAI NATAL

Ora pois, já se respira por aí o cheirinho a natal. Confesso que, apesar de continuar a gostar da festa na (da) família, o espírito da quadra, como hoje se festeja, não me é particularmente simpático. É que, e não sou bota-de-elástico, continuo a olhar com alguma nostalgia, o natal dos meus tempos de criança, isto porque no meu Natal continua a ter mais lugar o Menino Jesus do que o simpático velhinho inspirado no arcebispo turco São Nicolau. Então deixo-vos aí

A MORTE DO PAI NATAL

Era um pai Natal barrigudo, com longas barbas brancas e um fato vermelho com capuz. Vivia no Pólo Norte e tinha um trenó puxado por seis renas.
Uma noite de Natal, andando ele a distribuir brinquedos, pousou o seu trenó no telhado coberto de neve de uma casa de lousa. Como a chaminé era estreita e o pai Natal não cabia, resolveu descer e bater à porta.
- Quem é? – perguntaram de dentro vozes de criança.
- É o Pai Natal.
- Não pode ser.
- Sou, sou.
- O Pai Natal não existe.
- Existe sim! Sou eu!
- …e nós somos órfãos.
- Coitadinhos!
- E se és o Pai Natal, porque vens bater à porta em vez de entrares pela chaminé?
- Porque a chaminé é estreita e a minha barriga muito grande.
- Balelas! Tu é que não és o Pai Natal!
- Sou eu, sim! Abram-me a porta! Deixem-me entrar!
- Se és o Pai Natal e queres entrar, entra pela chaminé.
O Pai Natal não teve outro remédio. Se queria que acreditassem nele, tinha de entrar pela chaminé. Subiu de novo ao telhado. Despiu a roupa toda e untou o corpo com manteiga, para escorregar melhor. Saltou.
Splash! Em cheio na panela que estava ao lume!
Nunca os meninos tiveram um Natal tão feliz!

Rui Souza Coelho, Fernando Pessoa contra o Homem Aranha,
Lisboa, Ulmeiro, 1986
Gosto · 

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Este texto foi publicado ontem no Facebook.O aniversário da Bela Maria foi ontem

"Não houve almoço festivo nem bolo, nem flores. À mesa (fisicamente) era só eu. Mas tu estiveste cá, como muitas vezes acontece. Era o teu aniversário. Quando te apetecer cá voltar, prometo que te levarei

ATÉ AO PÔR DO SOL

Levar-te-ei, sorrindo, pelo braço
até quando as palavras
não forem mais que sombras;
até quando as estátuas
se aborreçam da da vida e pulverizem;
até quando os lagos
noivarem as nuvens e se puser o sol.
Levar-te-ei, não esqueças,
até ao pôr do sol.

(poema de Rebordão Navarro)"

sábado, 2 de novembro de 2013

Saudade

Se fosses ainda matéria, seria hoje o dia de visitar-te, estar algum tempo contigo à conversa. E levar-te flores.
Mas sabes, ainda te “vejo” cá por casa, muito presente, ainda converso muito contigo.
Hoje, que és espírito, será o dia em que num silêncio recolhido, estarei em frente a ti, olhos nos olhos, mão na mão, a dizer-te que te amo. E as flores que te levaria, se fosses matéria, deixo-tas em jeito de homenagem num bonito e singelo poema de Eugénio de Andrade:

E de súbito desaba o silêncio
É um silêncio sem ti
Sem álamos
Sem luas

Só nas minhas mãos ouço a música das tuas.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

E O OUTONO...

FOSSES TU
Fosses tu uma ave ou uma folha
E o Outono te viria desprender.

Daniel Faria

Estou sentada nas primeiras chuvas deste inesperado outono.
Abro as mãos e vejo um homem sorrindo. Os seus passos têm a medida dos meus. Um dia descobrirei porquê. Senta-se a meu lado, disposto
a esperar comigo a chegada do verão.
Pouco a pouco, uma música paira sobre o meu corpo. Agrafo os fios do sono para poder atravessar o outono de mãos dadas com ele. Foi quando percebi que lhe chamei amigo. Então, como se fosse um profeta, escreveu num muro branco o futuro dos gestos e da sede., falou-me de lugares onde os lábios rompema neve, e as gaivotas se tornam irmãs dos barcos, secretamente, num privilégio só concedidos ao mar.

Graça Pires, in Outono: Lugar Frágil


Gosto · 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

ACERCA DO OUTONO

“É outono, o lugar onde os temores se confundem com a coragem, onde é permitido recordar amores perdidos.
Outono, o lugar onde contorno um horizonte, alternadamente azul e mel, e a liturgia dos gestos se repete, intacta e definitiva.
Aprendo a direcção dos ventos nos braços das mulheres com quem convivo.
Uma andorinha incandescente pulsa na página onde transcrevo um adágio contraditório, enquanto uma ideia, flexível como sombras, contorna o lado indecifrável da cara dos dias.
Sei hoje que o amor e a morte são a matéria preferida dos que pernoitam debaixo de roseiras bravas e sabem que, tanto as garças como os papagaios de papel, voam sempre mais alto no outono. 
Vou no vértice desses bandos, numa migração de risos transparentes.
O restolho do milho é a cama que escolho para desvendar segredos nunca revelados por ninguém. É por isso que há franjas vermelhas pairando sobre as casas onde moram mulheres grávidas com um fogo fátuo marcado nos lábios”.

Graça Pires in Outono: Lugar Frágil