domingo, 5 de outubro de 2008

Hoje apetece-me...

Hoje, apetece-me que nada me apeteça. Hoje apetece-me que não me apeteça ir ao quiosque buscar o jonal, ir à padaria; hoje apetece-me que não me apeteça ler o jornal com notícias que já lemos ontem, as mesmas que vamos ler amanhã e depois, e depois; que não me apeteça confeccionar (ainda não aderi ao acordo) o almoço, tarefa que me calhou em sorte; que não me apeteça lavar a louça, outra tarefa que procuro desempenhar com esmero e dedicação; que não me apeteça ver no PC as mensagens que alguns amigos, e não só, me enviam, com destaque para aquelas - que graças a Deus abomino - normalmente oriundas do Brasil, e nos dizem que Deus existe, que é magnânimo, mas nos castiga (valha-nos Deus!), se não reencaminharmos a mensagem, pelo menos, para dez amigos. Hoje apetece-me que não me apeteça, que não me apeteça, que não me apeteça... Hoje fui tomado pela nostalgia, e apetece-me ficar sentado no sofá, a conversar com o meu gato, deitado no meu colo fingindo-se alheio e deliquescente, fiel companheiro de momentos de silêncio. Mas o Nico (é o meu gato) não aparece. E eu acordo do sonho. Caio no real. E lá tenho que ir ao quiosque, à padaria, lá tenho que ler o jornal, fazer o almoço, etc., etc., deixar passar o tempo... e só agora o Nico aparece. E, pasme-se a sua desfaçatez, pede-me, sim, porque ele também fala comigo, poemas com gatos. E não me deixa enquanto não lhe faço a vontade. Para o Nico aqui ficam dois poemas de gatos

Poema do gato

Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento rem sua paga,
e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo a acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as máxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

António Gedeão

História de gatos

Eu tinha um gato malhado
Que era muito malcriado
Se lhe dizia «bom dia»
Ele nem me respondia.
Se o mandava caçar,
Deitava-se a ressonar.
Se o mandava à escola
Ele ia jogar à bola.
Se o mandava pescar,
Até fugia do mar.
Aquele gato malhado
Não me fazia um recado,
Era só vê-lo miar
E dormir ou ressonar.

Deitei-o pela janela.

Entrou-me um gato por ela
Mais uma gata amarela
E os doze filhos dela.
Sentaram-se à minha mesa,
Comeram-me a sobremesa,
Dormiram no meu colchão,
Rasgaram o meu roupão
E dentro dos meus sapatos
Fizeram xixi os gatos.

Para ficar sossegado
Fui viver para o telhado.

LUISA Ducla Soares

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente.
Excelente. O texto, o bom português, a ironia, o desabafo, o desencanto, os poemas, enfim...
É este o Amilcar que esperava encontrar por aqui.
É este o Pai que gostaria de ter mais tempo para usufruir.
Continuarei atento, sempre. Mesmo que virtualmente.

Pedro.