quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Boa noite, mestre

Conheci o mestre Jaime Isidoro, no princípio dos anos sessenta do século passado, em casa do seu cunhado Jaime Valverde, o meu primeiro (único?) mestre de teatro. Privei com ele quando por lá aparecia e assistia respeitosamente aos ensaios. Voltei a encontrá-lo com alguma frequência nas segundas-feiras de poesia do Pinguim, normalmente por volta das 2 horas da manhã (pois era um homem da noite), bem comido e melhor bebido. Viveu uma vida (muito) bem vivida. Pintor (gosto especialmente das suas aguarelas), assumidamente do Porto, foi também galerista. Fundou a Galeria Alvarez, a mais antiga do país. Como animador e interventor cultural, criou nos anos 70 passados os Encontros Internacionais de Arte e foi também o pai da Bienal de Vila Nova de Cerveira. Viveu e trabalhou (normalmente à noite) na sua casa/ateliê de Valadares, mais conhecida por Casa da Carruagem. Partiu ontem de madrugada. Como pela madrugada gostava de viver.


PARA FAZER O RETRATO DE UM PÁSSARO

Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro
agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta
esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres...
Às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
a poeira do sol
e o ruído dos bichos entre as ervas no calor do verão
e agora espera que o pássaro se decida a cantar
se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar
então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro

Jacques Prevert
Tradução de Eugénio de Andrade, in "Trocar de Rosa", Edição Fundação Eugénio de Andrade, 5ª edição, Fevereiro 1995.

Jacques Prévert nasceu em 1900 perto de Paris e faleceu em 1977, na Normandia. Foi poeta e argumentista. O seu primeiro livro de poemas, Paroles, teve um sucesso enorme e consagrou-o, pela sua linguagem simples, os seus jogos de palavras e o seu humor. Foi um dos grandes criadores franceses, empenhado no movimento surrealista e também em toda a movimentação artística social e política em redor da Frente Popular. Muitos dos seus poema foram postos em música e cantados por grandes nomes da canção francesa.

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