sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Anatomia



Fotografia de Anaas

Sessão da Onda Poética de  ontem, em Espinho, (título da sessão: nice to eat you) abordando a vertente erotismo da poesia e textos de João Habitualmente.Aqui leio um texto inédito.

ANATOMIA
                
Gosto de estudar anatomia, é das coisas boas da vida, daquelas que dão alegria. Em pequeno fiz autópsias a frangos de aviário na banca da cozinha, serrei caracóis apanhados no sono aos pés dos jarros, esventrei salamandras de bojo laranja caçadas na mina, ajudei minha mãe a tirar com um alfinete a pevide às galinhas, operei sapos que ficavam moribundos ao serem calcados em noites de chuva. E, lição das lições, brinquei aos médicos com a Cacilda – era já o gosto da anatomia por mim abaixo, anunciando-se com a inexplicabilidade duma vocação. Gosto, pois, dessa alegria, a do corpo-a-corpo da anatomia.
Mas não estudo por manuais – fi-lo uma vez e nunca mais. Nem pelos atlas do corpo humano, reduzem a maravilha que somos a um inerte fulano. Não gosto de grandes calhamaços. Calhamaços não: são maçudos e escaramaços. Estudar por canhenhos tais é coisa do antes, hoje está ultrapassada e obsoleta. O calhamaço é espesso e lê-lo é lento - Obsolento.  Também não gosto de estudar por esqueletos. É frio e lúgubre estudar por esqueletos, são uma carga de ossos e dá uma carga de trabalho estudar a matéria osso a osso – ser médico é luz e não a triste vida de quem mergulhou num poço. O esqueleto olha para nós com aqueles buracos nos olhos e tem a expressão muito inexpressiva – tão inexpressiva que mete impressão. Estudar pelos seus ossos é um não sair do sítio, uma trepidação contra o marfim do seu corpo de sepulcro. Os esqueletos são o tempo parado, antiquados e vagarosos – esquelentos. Gosto de métodos mais velozes, desses que dá Deus a quem mostra as nozes. Gosto de estudar anatomia, ai isso gosto, gosto de a devorar. Em casa da Rita: num instante se despe, num instante me excita. E ali ficamos pela tarde a fio a contemplar o milagre: frondosos seios no lugar da mirrada grade costal, uns lábios túmidos cobrindo a cremalheira mandibular, fartas coxas a tapar o gelo oblongo dos fémures. Ah, e que dizer à vibrante região das ancas, à planície serena do ventre, ao triângulo triunfante do púbis, chamava-lhes o manual a bacia! Quem pode assim estudar anatomia?

                                                                          
                                                                                             

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