domingo, 18 de janeiro de 2009

Ary dos Santos

Imagem surripiada a mgbon.blogspot


Foi neste dia há 25 anos. Partiu e como confessou a Joaquim Pessoa, um dia, "Quando eu morrer vai ser em glória. Vai a classe operária toda ao meu funeral e eu, sentado no muro do cemitério a vê-los passar". E foi assim mesmo. Tinha tanto de cabotino como de truculento, mas era de uma coragem invulgar. Para ele "a poesia é, em primeiro lugar, a maneira que eu tenho de falar com o meu povo. Depois, é por causa desse povo, a própria razão da minha vida. É pesquisa, luta, trabalho e força. Ser poeta é escolher as palavras que o povo merece." Dele disse Batista Bastos, no Diário Popular, no dia seguinte à sua morte: "Ary dos Santos foi a cólera, a imprecação, o protesto. Disse português em Portugal e no estrangeiro.Disse que estávamos vivos, que eramos pessoas, que estávamos aqui e aqui continuaríamos. Declamava poemas seus e de outros grandes poetas portugueses em celeiros, estábulos, palanques improvisados, estádios, clubes e colectividades populares." Bebedor inveterado, o gin era a sua companhia. Era o escape para a sua solidão. Apesar de tudo, foi um poeta admirável, dos maiores da língua portuguesa. A sua poesia continua a ser digna de ser dita e cantada



AUTO-RETRATO
Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.


INFÂNCIA

Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
Talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto

A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala...
... o meu berço enfeitado a buganvília...
Tenho tantas saudades, minha mãe!


PAVANA PARA UMA BURGUESA DEFUNTA


A cabeça de vaca de minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da arelha.
Rói-lhe o rato da raiva asd narinas sem cor.

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto se não fosse a gordura
o retrato na sala o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
-não me limpaste o pó a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história
Dissolve-se na boca resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória.
In José Carlos Ary dos Santos, Obra Poéticca, Edições Avante, 1994

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Irreverente, escrevendo ou dizendo, grandioso, genial!!!
Quanto a mim, um MESTRE na Poesia.
Inventava e reinventava as palavras da nossa língua e dava-lhes outra musicalidade e outros cambiantes.

Bj

Maria Mamede