Vou continuar a falar de palavras. Não, vou falar de uma palavra. Uma palavra que anda constantemente na boca dos portugueses sendo até, segundo as estatísticas (realizadas por quem, não sei), a palavra mais falada em Portugal. Começa por
m e acaba em
a, e tem cinco letras. E é termo escatológico. Já adivinharam? Não, não é
malga, embora alguns (ou algumas) as merecessem em boa quantidade. Também não é
moeda, embora com poucas se possa comprar muita. Isso mesmo, carantonhas, é a palavra
merda. Quem, senão o português, que para mostrar surpresa, diz
"mas que merda é essa?" E usa como substantivo qualificativo
"você é uma merda". Também a utiliza como indicação visual:
"não se enxerga uma merda". Quando quer comunicar uma situação difícil de alguém, diz
"ele (ou ela) está na merda". Quando o português quer dar uma indicação de especialização profissional diz simplesmente "
ele (ou ela) só faz merda". E quando se lamenta da situação em Portugal, lá vem inevitavelmente a exclamação
"esta merda está cada vez pior". Mas nem tudo está mal com a merda que até pode ser uma coisa limpa. Quem o diz é o poeta Jorge de Sousa Braga na sua
EPÍSTOLA SOBRE A MERDAAs retretes transformadas em santuários:
eis a minha obcessão
A merda é uma boa causa
Demasiado boa
para que alguém lute por ela
Só é poeta aquele que
é capaz de comer as próprias fezes
A merda é a única coisa
que não se pode conspurcar.
E quando queremos criticar, por exemplo, o Governo (todos os Governos), lá vai o
"as moscas mudam mas a merda é a mesma".Haveria muito a dizer ainda sobre expressões merdosas. Mas ficamos com esta, de uma crónica do MEC, que para mim é o melhor que sobre a merda eu já li. "
Quem, senão um português, consegue, por exemplo, estar deliciado a ouvir uma sonata de Beethoven, e dizer, sinceramente embebecido, «Ó pá, eu adoro esta merda»?E agora, parece que não tem nada a ver, mas tem, para todos aqueles "revolucionários" do tempo do "prec" que pensam que foram quem "inventou" a reforma agrária, desiludam-se, pois já em 1936, em Évora, D. Tancredo (O Lavrador), Presidente da Junta Corporativa dos Sindicatos Reunidos, Norte, Centro e Sul do Alentejo, escrevia assim na sua
EXPOSIÇÃO
Porque julgamos digna de registo
a nossa exposição senhor Ministro,
Erguemos até vós humildemente,
uma toada uníssona e plangente
em que evitámos o menor deslize
e em que damos razão da nossa crise.
Senhor! Em vão, essa província inteira,
desmoita, lavra, atalha a sementeira,
suando até à fralda da camisa!
Falta a matéria orgânica precisa
na terra que é delgada e sempre fraca!
A matéria em questão, chama-se
cáca...
Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.
Se os membros desse ilustre Ministério
querem tomar o nosso caso a sério,
se é nobre o sentimento que os anima,
mandem cagar-nos toda a gente em cima
dos maninhos torrões de cada herdade!
E mijem-nos também por caridade!
O senhor Oliveira Salazar
quando tiver vontade de cagar
venha até nós!
Solícito, calado,
busque um terreno que estiver lavrado
deite as calças abaixo, com sossego,
ajeite o cu bem apontado ao rego
e... como Presidente do Conselho,
queira espremer-se até ficar vermelho!
A nação confiou-lhe os seus destinos?!...
Então, comprima, aperte os intestinos;
se lhe escapar um
traque, não se importe,
... quem sabe se o cheiro nos dá sorte?
Quantos porão as suas esperanças
num
traque do Ministro das Finanças?...
E quem viver aflito, sem recursos,
já não distingue os
traques dos discursos
Não precisa falar! Tenha a certeza
que a nossa maior fonte de riqueza,
desde as grandes herdades às courelas,
provém da merda que juntarmos nelas.
Precisamos de merda senhor Soisa!
E nunca precisámos de outra coisa.
Adubos de potassa?... Cal?... Azote?!...
Tragam-nos merda pura, do bispote!
E todos os penicos portugueses
durante pelo menos uns seis meses,
sobre o montado, sobre a terra campa,
continuamente nos despejem trampa!
Terras alentejanas, terras nuas,
desespero de arados e charruas,
quem as compra ou arrenda ou quem as herda
sente a paixão nostálgica da merda...
Precisamos de merda senhor Soisa!
E nunca precisámos de outra coisa.
Ah!... Merda grossa e fina! Merda boa
das inúteis retretes de Lisboa!...
Como é triste saber que todos vós
andais cagando sem pensar em nós!
Se querem fomentar a agricultura
mandem vir muita gente com soltura.
Nós daremos o trigo em larga escala,
pois até nos faz conta a merda rala.
Venham todas as merdas à vontade,
não faremos questão da qualidade;
formas normais ou formas esquisitas!
E desde o cagalhão às caganitas,
desde a pequena poia à grande bosta,
de tudo o que vier a gente gosta.
Precisamos de merda senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.
Pela Junta Corporativa dos Sindicatos Reunidos, Norte, Centro e Sul do Alentejo
O Presidente
D. Tancredo (O Lavrador)
1936 - Évora