segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Tributo a Ary dos Santos

"Cabotino, espectaculoso, truculento, corajoso como poucos, cabeça alevantada, punho cerrado e erguido, olhar de fogo, a chispa indomável de uma labareda interior que o consumia"
Assim começa o elogio fúnebre de José Carlos Ary dos Santos, escrito por Batista Bastos, no Diário Popular de 19-1-1984. Passa hoje mais um aniversário do nascimento (7-12-1937)

"Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo, dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lanzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
poeta castrado não."

Foi um poeta de mão cheia, talentoso, com uma facilidade de escrita admirável. As palavras que escreve são sempre musicais.Há uma cadência musical em tudo o que escreve, mesmo na poesia livresca, digamos, aquela destinada a ser publicada em livro.

"...
Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer."

As suas cantigas e poemas reflectiram um tempo, uma época, um amor, um encontro e um desencontro, uma furtiva lágrima, escritas com o "irrespeito que lhe era natural, com a irreverência que lhe era comum" (com o escreveu Batista Bastos).
Um dia disse ao Fernando Tordo: -"Ó puto, escreve uma música onde deu possa meter muitas palavras." Tordo foi descansar e quando, de manhã, chegou ao pé de Ary disse-lhe, trauteando uma espécie de melodia: -"Acordei com esta melodia na cabeça e com a palavra "tarde" a martelar a melodia". Então Ary agarrou na caneta, no papel, e escreveu - em hora e meia - este fantástico poema, com que finalizamos o nosso modesto tributo:

ESTRELA DA TARDE

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca tardando-lhe o beijo morria.
Quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia
Quando nós nos olhámos, tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos, unidos, ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite, para haver outro dia.

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és alegria
Ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza!

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram.
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite se deram
E entre os braços da noite, de tanto se amarem, vivendo morreram.

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria
Ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza!

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

1 comentário:

Pedro disse...

Eu, se escrevesse algo assim, acho que nunca mais escreveria outra vez. Pelo menos, sobre o amor.
Sim, porque ser-me-ia quase impossivel não escrever sobre... qualquer coisa.
E aposto que tudo isto lhe saiu, ao Ary dos Santos, tipo turbilhão, de uma só vez... Excessivamente brilhante como ele era.

Obrigado, Ary.

Pedro.